Vida que segue: Os cem anos de João Saldanha
Mário Magalhães
Na próxima segunda-feira, 3 de julho, o nascimento de João Saldanha completará cem anos.
Há uma década, o jornalista, escritor e cineasta André Iki Siqueira presenteou o país com a soberba biografia João Saldanha: Um vida em jogo. A edição da Companhia Editora Nacional esgotou. Quem procura o livro nas livrarias não o encontra. Na internet, frustra-se com o aviso de ''indisponível''.
Retrato da indigência nacional com sua história e em particular com a do futebol, o sumiço da biografia é vergonhoso. O autor procura nova editora, para que a grande história de João Saldanha seja conhecida por mais gente.
O que o livro tem de fraco é o prefácio, da lavra deste blogueiro. Como homenagem ao centenário do João Sem Medo e incentivo a uma nova edição, reproduzo abaixo o que escrevi dez anos atrás.
*
Vida que segue
O menino testemunhava o pai regressar à casa, com o pescoço aquecido pelo lenço encarnado dos maragatos, depois das batalhas contra os chimangos que regavam de sangue os pampas épicos do Sul. Mal saído dos cueiros, empunhava revólveres de verdade e tiroteava de brincadeira com o irmão.
Que tremendo personagem de romance, daqueles clássicos de Erico Verissimo, o guri não daria.
Imagine-o crescido e na pele de um instrutor de guerrilha rural, conspirador protegido por nome de guerra, a treinar camponeses que pelejavam pela posse da terra, matando e morrendo no norte do Paraná.
Merecia filme neo-realista.
Ou, já torcedor passional do Botafogo, a pôr o goleiro da equipe, titular da seleção brasileira em Copa do Mundo, a correr de bala por causa da suspeita de estar na gaveta, vendido aos oponentes.
Valia verbete em qualquer antologia do futebol mundial.
Na qual não faltaria outro entrevero protagonizado pelo alvinegro, então técnico do escrete canarinho, ao invadir a concentração do Flamengo de revólver calibre 32 à mão para acertar contas com um falastrão que o maldissera.
Anos depois, o gaúcho abriria fogo em uma farmácia do Leblon, para vingar a empregada que não conseguira trocar umas pilhas, e acabaria preso.
Como preso fora ao desafiar os policiais truculentos e assassinos que tomaram de assalto a sede da União Nacional dos Estudantes, na praia do Flamengo. Reagira a um tira com uma cadeirada e tivera as costas furadas por um projétil. Ferido e internado, fugiu do pronto-socorro com a camisa ainda ensanguentada.
Outra fuga foi impossível quando o apanharam em uma manifestação pelo monopólio estatal do petróleo e o arrastaram para o Departamento de Ordem Política e Social, em São Paulo, onde o submeteram aos costumes. Ou seja, cobriram-no de sopapos.
O corretivo não lhe roubou o destemor com que, desarmado, peitou o bicheiro que adentrou um estúdio de televisão disposto a calar com pólvora o antagonista _o pirralho gaudério era agora o comentarista esportivo que, sem travas na língua, fustigava o contraventor dado a veleidades de cartola.
Tratava-se do mesmo banqueiro, Castor de Andrade, que teria subornado, ou tentado, o goleiro Manga, do clube da estrela solitária. E que viria a relembrar sua irrupção na TV com o reconhecimento insuspeito: “Foi um corre-corre danado, mas o homem é macho e me enfrentou”.
Era tão valente que o dramaturgo Nelson Rodrigues cunhou a consagração imorredoura para o amigo que ignorava a covardia: João Sem Medo.
Pois o João Sem Medo não foi invenção de Nelson, nem de ninguém. Nenhuma imaginação germinaria, como ficção, a figura de João Saldanha, um herói de carne e osso.
O que você lerá a seguir, portanto, não é um romance. Mas se prepare, porque, como nos romances de aventura mais inspirados, este livro é de tirar o fôlego. Como foram os dias aventurosos de João Saldanha.
O João que renasce pela pena de André Iki Siqueira é ainda mais fascinante que o cidadão de engenhosidade proverbial para fantasiar os fatos.
Ele mirava um mapa no qual se descortinava a Normandia e confidenciava, na cara dura, que perfilara nas forças do marechal Montgomery no desembarque aliado de 1944. Desembarcar na costa francesa no Dia D não desembarcou, mas em Uma vida em jogo descobrimos que ele foi mesmo correspondente de guerra.
Sua alegada intimidade com o líder comunista chinês Mao Zedong rendeu a célebre caçoada do jornalista Sandro Moreyra: Saldanha seguia Mao tão de perto numa marcha, às vésperas do triunfo revolucionário de 1949, que pisou no calcanhar do camarada. O futuro chefe de governo virou-se e bronqueou: “Pôla, João!”.
Se Saldanha não gastou sola na marcha, de fato conheceu muito bem a China vermelha, e lá o passaram na faca, para salvá-lo de uma crise de apendicite. Em uma viagem a Assunção, cantarolou uma canção em chinês, e os colegas tripudiaram: é mais uma marmota do João. No dia seguinte, numa loja, uma anciã chinesa fez coro com ele.
A revelação mais notável de André Iki Siqueira é que, por mais fabuloso que tenha sido o João Saldanha das ilusões de João Saldanha, o personagem real era ainda maior que o dos sonhos. Não o Fred Astaire com quem, pé-de-valsa, ele se comparava, mas o John Wayne brasileiro, na imagem certeira do cartunista Jaguar.
Uma vida em jogo reconstitui a convivência de Saldanha, boleiro da praia de Copacabana, com seu treinador Neném Prancha, o autor das frases mais criativas do futebol nacional; o título de campeão carioca do Botafogo dirigido pelo torcedor desbragado; a camaradagem com Garrincha, que agradecia: “Seu João deixa a gente jogar o que sabe”; com Didi, que o amigo escalou como colunista de um jornal do Partido Comunista; o “Topo!” com que aceitou em 1969 o convite para comandar a seleção; os bastidores das Eliminatórias com as “feras do Saldanha”, como a nação aclamava os craques que conquistariam o Tri; a demissão controversa semanas antes da Copa do México; e o esforço derradeiro para cobrir o Mundial da Itália, de onde só retornou morto.
Saldanha não foi exclusivamente um homem do esporte, ambiente cujos holofotes lhe renderam fama e prestígio. Longe das luzes, foi um militante comunista de dedicação monástica. Nasceu em 1917, ano da revolução dos bolcheviques na Rússia, e morreu em 1990, meses após assistir pela TV ao Muro de Berlim em ruínas. A pesquisa exaustiva de André Iki Siqueira desencobre o homem inteiro, o iluminado e o das sombras.
E não esconde, já que por sorte carece de vocação para hagiografia, passagens que não enobrecem biografia alguma. O revolucionário da política, criatura do seu tempo, proclamou: “Mulher minha não trabalha fora!”. Quando a companheira, bolsa d’água estourada, só pensava em rumar para a maternidade, o marido exigiu que antes ela lhe esquentasse o pão. O democrata que combateu a ditadura militar no Brasil não se furtou a aplaudir a ocupação brutal da Tchecoeslováquia pelas tropas da União Soviética. E fraseou: “Aquilo é a zona do agrião dos soviéticos; a bola dividiu ali, eles entram de sola”.
Foi essa verve, quando a serviço das nobres causas do futebol, que me encantou na infância. No Maracanã, radinho no ouvido, eu matutava: “Por que os técnicos não ouvem no intervalo o que o João Saldanha ensina? Se fizerem o que ele diz, o jogo está no papo”.
Eu não tinha ideia da sua envergadura na história do futebol brasileiro. Nem que era, a rigor, um personagem da história do Brasil. Com suor de repórter obstinado e alma de escritor sensível, André Iki Siqueira buscou na grande história de João Saldanha um pedaço da história perdida do país.
Saldanha pontuava seus artigos com o bordão “Vida que segue”. Pois sua vida comovente segue e pulsa nas próximas páginas, como se ele ainda estivesse ao nosso lado, a puxar dos pulmões castigados a saudação de abertura dos seus comentários: “Meus amigos…”.