Blog do Mario Magalhaes

‘Os dias eram assim’: novela apanha, mas tem talento, beleza e dignidade

Mário Magalhães

Reencontro de Renato e Alice bomba na web

Os personagens Renato e Alice se reencontram no comício da Candelária, em 1984 – Foto TV Globo

 

Há tempos não se via uma novela apanhar tanto como ''Os dias eram assim''. Apanha, da crítica e nas redes, mais que cachorro magro. No cartório, nem se chama novela. É uma supersérie, como a TV Globo batizou suas novelas mais curtas do fim de noite. Quanto mais apanha, maior fica o contraste entre a acidez das críticas e a qualidade do folhetim.

A novela escrita por Angela Chaves e Alessandra Poggi é achincalhada sobretudo pelos negacionistas dos crimes de lesa-humanidade de autoria da ditadura (1964-1985). É gente que nega ter havido tortura e extermínio. Parentes de quem sustenta ser ficção o genocídio de judeus na Segunda Guerra. Esse é o terreno da boçalidade, da ignorância e da má-fé. Deixo para lá.

Falo de arte e estética. Li e ouvi restrições às limitações de caracterização do tempo em que se passa a trama. Ora, ''Os dias eram assim'' não é um documentário, e sim ficção. O enredo não se concentra nas sombras daquele período, mas na paixão entre dois jovens. As circunstâncias da ditadura interferem na vida de Alice e Renato, porém são eles os protagonistas, e não o mundo em que vivem. À ficção recomenda-se (às vezes) verossimilhança, não exatidão. Acompanhamos uma história de amor fruto da criatividade das autoras. É isso que elas se propõem a contar. Não pretendem autopsiar a história.

Reclamam de alegados personagens caricaturais. O mais nítido seria o empresário vivido por Antonio Calloni. Ele financiava o aparato repressivo e presenciava sessões de tortura. Pois saibam os que não sabem que havia empresários que não apenas testemunhavam sessões de tortura como sentiam prazer físico e existencial com o suplício dos opositores da ditadura. Gozavam com a dor alheia.

Incomodou a ouvidos atentos ouvir música da Legião Urbana no comecinho dos anos 1970, quando a banda não existia. Ontem, ''Tempo perdido'' tabelou com os acontecimentos de abril de 1984, o mês dos gigantescos comícios pró-eleições diretas para presidente. A canção foi lançada em LP de 1986. A mim, não incomodou. Renato Russo é clássico. Liberdades poéticas e históricas são próprias da ficção. Curiosidade: Renato e a Legião participaram de show pró-diretas. É o de menos. Trilha sonora pode ou não guiar-se, em ficção, pela época que a história narra. Na não ficção, a minha praia, é outra conversa.

O que incomoda é o formato em que, mal principia, o capítulo termina. Já não basta o horário em que vai ao ar, adequado a quem não tem de acordar cedo. Costumam ser dois bloquinhos. Parece namoro interrompido ainda nas preliminares.

O que não impede grandes momentos. A seleção de elenco foi feliz. Dos novatos aos veteranos, o padrão é alto. Cassia Kiss se reafirma como uma das maiores atrizes brasileiras. Ela é a mãe que conspira contra a relação amorosa de um filho para, em troca, salvar a vida de outro rebento. Nos papéis principais, Renato Góes e Sophie Charlotte deram liga (ele, 30 anos, e Chay Suede, 24, que está em cartaz na novela ''Novo Mundo'', são dois dos destaques da nova geração televisiva).

Comparar ''Os dias eram assim'' com ''Anos rebeldes'', mais do que impróprio, beira a maldade. É como querer comparar o Vinicius Junior ao Zico. A série de 1992 foi a melhor que a Globo produziu. Era uma série de fato, com longos capítulos/episódios. Uma obra-prima da dramaturgia da TV.

Comentam que a novela de 2017 não estaria dando a audiência esperada. Será? Nesse caso, pior para a audiência. Quando se encerra um capítulo, dá vontade de ver o próximo. ''Os dias eram assim'' tem dignidade (não transforma verdugos em mocinhos), talento (inclusive da direção) e beleza (nunca é fácil falar de amor).

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