Blog do Mario Magalhaes

O novo drible do Garrincha e o sumiço do corpo da Evita

Mário Magalhães

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O anjo das pernas tortas – Fotos acervo Última Hora/Folhapress

 

Foi o Ruy Castro quem desvendou, a partir do gigantesco tronco indígena brasileiro, o ramo generoso que dera no Garrincha. O Mané descendia do povo fulniô, que vivia em Águas Belas, no agreste pernambucano. Os índios de lá eram chegados numa bebidinha alcoólica. E, isso era segredo deles, achavam que qualquer maneira de amor vale a pena.

Dois anos depois da publicação de Estrela Solitária, a biografia do Garrincha lançada pelo Ruy em 1995, o repórter fotográfico Antônio Gaudério e eu pegamos a estrada para contar histórias do país do futebol. Em Águas Belas, assistimos a um jogo em que um time fulniô perdeu por 2 a 1. Depois da partida, alguns boleiros da casa fumaram xanduca, o cachimbo tradicional da tribo, e beberam aguardente.

Os mais velhos falavam o idioma iatê. Como não estava no período do Ouricuri, ritual sagrado que vai de setembro a novembro, visitamos a reserva fulniô, a cinco quilômetros da aldeia. No resto do ano a reserva permanece vazia. Na entrada, uma placa adverte: ''Não entre – Perigo – Tribo de índio''. À saída, nossos anfitriões nos convidaram para mergulhar num lago. Não deu, pois estávamos atrasados para o destino seguinte do nosso pinga-pinga.

O Gaudério documentara um fenômeno que fazia sentido: homens de pernas tronchas como as do Garrincha eram figurinhas fáceis. Como anoitecia, eu acendi os faróis, a pedido do companheiro de viagem. O Gaudério transformou a iluminação fornecida pelo carro numa luz mágica. Houve quem mais tarde comentasse que parecia retrato de estúdio high-tech.

É curioso que o mais endiabrado driblador fosse chamado de anjo. Das pernas tortas, mas anjo. Trinta e quatro anos depois de sua morte, o Garrincha acaba de dar mais um drible. Ou de levar.

Corroído pelo alcoolismo, o gênio da camisa 7 partiu em 1983, às vésperas de completar cinquenta anos. Enterraram-no no cemitério de Raiz da Serra, em Magé, Baixada Fluminense. Na lápide se lia ''Aqui descansa em paz aquele que foi a alegria do povo''. Já não descansa: hoje noticiaram que o corpo do Garrincha desapareceu.

Os parentes do melhor entre os melhores pontas-direitas não sabem onde repousam os restos dele. O cemitério especula que podem ter sido perdidos numa exumação. Ignora-se até se ainda está enterrado. Dois lugares indicam ser a sepultura. No jazigo original, a ossada teria sido retirada quando um primo do Garrincha ali foi sepultado. Perderam o corpo do anjo endiabrado.

A infâmia agora descoberta decorre de desprezo, tingido de morbidez, com a história. E acontece porque o Garrincha morreu pobre.

Em 1955, o corpo da argentina Eva Perón sumira não por bagunça vexatória, como o do Garrincha, mas porque o sequestraram. A mulher do presidente Juan Domingo Perón morrera em 1952 de câncer. Seu cadáver foi embalsamado, mantido num esquife de vidro e visitado por multidões. Deposto por um golpe, Perón se exilou na Espanha. E a múmia da Evita desapareceu da sede de uma central sindical, onde continuava o processo de embalsamamento. Militares do Exército a carregaram à noite. Em 1957, costurado um acordo com o Vaticano, embarcaram na moita o corpo para a Itália. Lá o esconderam com nome falso num cemitério de Milão. Só na década de 1970 regressaria para Buenos Aires.

Essa foi a matéria-prima factual do romance Santa Evita, do Tomás Eloy Martínez. O escritor argentino fantasiou caminhos e descaminhos da Evita embalsamada. Gabriel García Márquez assinalou, sobre a peregrinação necrófila: ''Enfim, o romance que eu sempre quis ler''.

Uma vez eu perguntei ao Tomás Eloy o que era fato em Santa Evita. ''Nada'', ele respondeu. Tudo panos de fantasia costurados com linhas da história e seus personagens.

O corpo da Eva Perón se encontra no cemitério da Recoleta, em Buenos Aires. A duzentos metros do portão principal e cinco metros abaixo da terra.

E o do Garrincha?

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