Temer debocha do país. Gravação é, sim, escandalosa. Conchavo amadurece
Mário Magalhães
Rouco como um torcedor de futebol depois do jogo, Michel Temer abriu seu discurso pontualmente às quatro horas e dez minutos da tarde de ontem. Sua torcida, ali, era para convencer a diminuta parcela dos cidadãos a quem ele se dirigia. Depois de quatrocentas palavras, pronunciadas em quatro minutos e trinta e oito segundos, o orador havia protagonizado um vexame de antologia. Talvez não na opinião dos destinatários do seu recado.
Que eram _são_ os seus sócios mais graúdos na aventura que lhe permitiu sentar na cadeira presidencial. Temer falou a quem manda, o empresariado mais abastado. Em troca de sua permanência no governo, ofereceu mais sangue. Não do pescoço dele. E sim dos mais pobres, sacrificados sem piedade nas ditas reformas que ameaçam retroceder os direitos sociais à primeira metade do século 20. ''Todo o imenso esforço de retirar o país de sua maior recessão pode se tornar inútil'', disse. ''E nós não podemos jogar no lixo da história tanto trabalho feito em prol do país.''
Ao proclamar seu dia do fico, Temer busca passar à história não uma bravata fugaz, e sim uma sentença irremediável. Dá de ombros para a maioria dos brasileiros, que o rejeitam como um vegano despreza a carne de rês da Friboi. Trata-os (trata-nos) como parvos. Na passagem suprema de atrevimento, debochou: ''Ouvi realmente o relato de um empresário que, por ter relações com um ex-deputado, auxiliava a família do ex-parlamentar''. Por covardia, calou sobre a identidades dos ditos-cujos. São eles Joesley Batista e Eduardo Cunha, este correligionário do presidente.
Na gravação liberada pela Justiça pouco mais tarde, inexiste referência aos parentes do correntista Eduardo Cunha. O que se escuta é o seguinte, em palavras de Batista, sobre o ex-presidente da Câmara: ''Eu, o que ia falar, assim, dentro do possível, eu fiz o máximo que deu ali, zerei tudo o que tinha de alguma pendência daqui para ali, zerou tudo, liquidou tudo. E ele foi firme em cima. Ele já tava lá, veio, cobrou, tal, tal, tal. Pronto. Acelerei o passo e tirei da fila''.
Mais: ''O negócio dos vazamentos do telefone lá do Eduardo com Geddel [Vieira Lima] volta e meia citava algo meio tangenciando a nós. Eu tô lá me defendendo. Como é que eu… O que eu mais ou menos me dei conta de fazer até agora? Eu tô de bem com o Eduardo…''. Temer advertiu: ''Tem que manter isso, viu? (Inaudível)''. O empresário emendou: ''Todo mês''.
O que seria todo mês? Um beijinho na bochecha do um-sete-um encarcerado? Observa-se, porém, um contraste relevante em relação à afirmativa do Ministério Público Federal. A procuradoria deu a entender que a gravação provaria cabalmente o endosso de Temer às propinas que continuariam a ser pagas a Cunha. A má qualidade técnica do áudio não permite assegurar que se passou o que parece que se passou. Na dúvida, é impossível condenar o réu por esse trecho do diálogo. Pelo menos em tribunais onde os juízes não se comportam como acusadores. É plausível a palavra de Batista, segundo o qual Temer chancelou o agrado a Cunha. Mas só palavra, o relato alheio, não basta, ou não deveria bastar para punir alguém.
Para Temer, o problema mais grave é que a gravação evidencia que ele foi informado sobre as armações de Joesley Batista e seu conglomerado JBS para conter ilegalmente investigações e obstruir a Justiça. ''Eu consegui um procurador dentro da força-tarefa'', disse o mandachuva da holding dona da Seara. Temer: ''Que tá lá…''. Batista: ''Que também tá me dando informação''.
Não há notícia de que Michel Temer tenha agido como o ofício obriga. Ou seja, informado às autoridades o que tinha ouvido, a infiltração criminosa, por meio de um funcionário público, no coração de investigação da Polícia Federal e do Ministério Público Federal.
Se tal gesto não o impede de prosseguir no Planalto, é difícil saber o que impediria. Fosfosol: um ano atrás, a presidente constitucional Dilma Rousseff foi deposta por muito menos, com base no pretexto das chamadas pedaladas fiscais. Não havia então as versões de Mônica Moura e João Santana sobre o alegado alerta da presidente sobre a prisão do casal de marqueteiros.
A conversa do anfitrião Temer com o convidado Batista tem momentos que, se não constituem crime, revelam um pouco mais a alma do presidente. Adulado como homem tranquilo, sábio e tolerante, ele se refere a Marcelo Calero como um ''idiota''. O antigo ministro da Cultura deixou o governo ao se insurgir contra uma traquinagem patrocinada pelo então ministro Geddel Vieira Lima. Para o ''sábio'' Temer, Calero é um reles idiota.
O Planalto plantou _a novidade não é atribuída a pessoa_ a informação de que suspeita de adulteração da gravação. Pode ter acontecido? Pode. Mas carece de lógica. Joesley Batista não é bonzinho, generoso. Nada disso. Trata-se de um espertalhão e, tudo indica, criminoso. Depois de cometer crimes, ele tenta proteger os seus negócios e a própria pele. Se entregasse diálogos fraudados, estaria arriscado a se prejudicar ainda mais. Também seria desmoralizante para Rodrigo Janot, procurador-geral da República, e Edson Fachin, ministro do STF. Se Batista fosse um suicida, seria verossímil a suspeita. O empresário aparenta ter amor à vida.
Outra queixa dos aduladores de Temer é que seu interlocutor naquela noite de março no Jaburu não tinha as melhores intenções ao registrar em segredo a conversa. É óbvio como as limitações do elenco do Flamengo que havia o propósito de se favorecer, oferecendo provas à Justiça. Daí a sugerir que a gravação não serviria como prova abre-se uma distância semelhante à que separa um presidente da República digno da função e a figura histórica de Michel Temer.
Enquanto o presidente se desdobra para sobreviver no cargo que lhe premia com foro privilegiado, amadurecem as tratativas de quem quer se livrar dele, mas teme ainda mais a manifestação soberana dos cidadãos nas urnas. Como em 1984, no ocaso da ditadura, o voto popular atormenta muita gente. Há quem classifique as diretas já como golpe. Ora, se propostas de emenda à Constituição são acolhidas quando se trata de mexer em conquistas dos trabalhadores, por que seriam golpistas ao permitir o pronunciamento coletivo sobre os destinos do país? As PECs são previstas em lei. Logo, seria legal uma que antecipasse as eleições. Isso entende até quem nunca presenciou uma aula de direito constitucional e não posa de rábula.
Idem o impeachment: é catalogado em lei; desde que a cumpra, é procedimento legal e legítimo _e urgente.
Sem multidões nas ruas exigindo #DiretasJá, o Brasil assistirá mais uma vez a um conchavo. Talvez com Temer. Talvez sem ele. Certamente, de cúpula, barrando o conjunto dos eleitores.
P.S. 1) são esperadas novas denúncias de Joesley Batista, depois das que atingiram Michel Temer e Aécio Neves. Para o Brasil, é bom que venham, com provas;
P.S. 2) para ler e ver a íntegra do discurso de Temer recusando a renúncia, basta clicar aqui;
P.S. 3) para ler a transcrição da conversa entre Temer e Batista, clique aqui.