Blog do Mario Magalhaes

O cara não transava à noite no Danúbio Azul: 2 ou 3 toques sobre Belchior

Mário Magalhães

Resultado de imagem para uol belchior

Homenagem a Belchior na praça Roosevelt, em São Paulo – Foto Nelson Antoine/Estadão Conteúdo

 

Duas ou três coisas sobre Belchior, o imortal:

O bardo sobralense participou do comício da Candelária, quando centenas de milhares de manifestantes reivindicaram no Rio eleições diretas para presidente. Ao chegar ao microfone, ele cantarolou seus comentários a respeito de John: ''Saia do meu caminho/ Eu prefiro andar sozinho/ Deixem que eu decida minha vida/ Não preciso que me digam/ De que lado nasce o sol/ Porque bate lá meu coração''. Em versos, disse mais do que se discursasse por horas. Ovacionaram-no. Corria o dia 10 de abril de 1984. Como eu sei? Eu me lembro, estava lá.

Persistem até hoje controvérsias sobre a origem de alguns versos das canções de Belchior. Suas letras, como a de tantos grandes compositores, contêm citações, referências e influências vastas. Augusto Pontes foi um dos intelectuais mais brilhantes do Ceará. Frasista inigualável. Guru de numerosas gerações, da de Belchior à de Paulo Linhares e à de Fernando Costa. ''Apenas um rapaz latino-americano'' teria sido inspirada por uma tirada recorrente de Augusto na boemia, mais ou menos assim: ''Eu sou apenas um rapaz brasileiro, sem dinheiro no banco, sem parentes militares''. A aliteração ''vida, vento, vela, leva-me daqui'', de ''Mucuripe'', parceria de Belchior e Fagner, também seria uma sacada de Augusto incluída na obra-prima da dupla. Não sei se escreveram uma biografia de Augusto Pontes. Eu a devoraria. A de Belchior sai ainda neste ano, de autoria do jornalista Jotabê Medeiros, pela editora Todavia.

Nas transcrições de letras de Belchior publicadas desde o domingo, uma crase muda o sentido da letra. Em ''Tudo outra vez'', ele cantou: ''E um cara que transava a noite no Danúbio Azul/ Me disse que faz sol na América do Sul/ Que nossas irmãs nos esperam/ No coração do Brasil''. O pessoal tem escrito ''um cara que transava à [sic] noite no Danúbio Azul''. O cara não fazia sexo depois depois de o sol partir. Não transava, por exemplo, ''à tarde'' no Danúbio Azul. Transar, no caso, significa curtir, apreciar ou organizar. O que era o Danúbio Azul? Os contemporâneos de Belchior na arte e na cultura cearenses não se lembram de nenhum bar ou estabelecimento com esse nome. O arquiteto Fausto Nilo, um dos maiores letristas da música brasileira, foi amigo de Belchior desde o Liceu do Ceará _Fausto estava um pouco à frente no colégio. Há pouco, por telefone, Fausto disse que o Danúbio Azul deve ser uma criação poética de Belchior. Que, com esse nome, não teria existido, mesmo longe de Fortaleza. Por que o cri-cri com a crase? Porque o cara curtia, apreciava, organizava a noite. Não transava à noite _ao menos na canção genial, é claro.

(O blog está no Facebook e no Twitter )