Os medos de Belchior
Mário Magalhães
Três ou quatro semanas atrás, no almoço de domingo aqui em casa, dei um toque sobre a constância do medo nos versos de Belchior. Era dele o CD que tocava. Não dei o toque para qualquer um, mas para uma moça que há mais de vinte anos veio de Fortaleza para o Rio.
Nesse tempo todo, mantivemos uma controvérsia sem solução: desde sempre eu falei que, carioca agauchado, conhecia mais sobre a obra de Belchior e do Pessoal do Ceará do que ela, potiguar-cearense. Ao contrário, pensa a moça. Nunca nenhum dos dois jogou a toalha. Cá entre nós, talvez ela tenha razão. Eu ainda matutei, naquele domingo: e o meu medo? O meu medo é que Belchior não faça mais canções.
Medo bobo. Porque o sobralense já fizera tantas e tão maravilhosas que, mais do que clássico, era eterno. É eterno. A eternidade picada por seus medos. Desde moço, em Na hora do almoço, com a família no centro da sala, comida e tristeza. Quadra sombria. “O seu peito deserta/ Sua mão parada/ Lacrada, selada/ E molhada de medo”. Medo, medo, medo, medo, medo…
O medo negado na parceria bissexta com Fagner, em Mucuripe: “Hoje à noite namorar/ Sem ter medo da saudade/ Sem vontade de casar”. Pois eu tive vontade. Mucuripe é a obra-prima com a mais bela aliteração da música brasileira, “Vida, vento, vela, leva-me daqui”. A moça que veio do Ceará também acha. Tanto ela quanto eu já escrevemos isso. De quem foi o comentário original? Não sabemos, e é melhor mudar de assunto.
Ignoro se a aversão de Belchior a voar era verdadeira. Besteira: toda poesia é verdade. Em Medo de avião, ele pegou pela primeira vez na sua mão. No Pequeno mapa do tempo, tremeu: “Eu tenho medo de que chegue a hora/ Em que eu precise entrar no avião”.
O Pequeno mapa… é seu inventário de medos. O medo de abrir a porta que dá para o sertão da solidão. “Eu tenho medo Estrela do Norte/ Paixão/ Morte é certeza/ Medo Fortaleza/ Medo Ceará.”
Morte é mesmo certeza. Se fosse para imprimir um epitáfio para Belchior, eu escolheria um trecho de Tudo outra vez: “E vou viver as coisas novas/ que também são boas/ O amor, humor das praças cheias de pessoas/ Agora eu quero tudo/ tudo outra vez”.
Se o que se viveu é o que se lembra, não há como eu esquecer Belchior. A não ser que esqueça muito do que vivi. Desde a época em que cantava “mas é você que é mal passado e que não vê”, quando o autor escrevera “mas é você que ama o passado e que não vê”. Eu mitigava os meus medos ao ouvir o verso seguinte: “(Que) o novo sempre vem”.