Blog do Mario Magalhaes

Sabáticas: Quando o jornalismo mata vivos e ressuscita mortos

Mário Magalhães

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O escultor Auguste Rodin (1840-1917): ele vem para a exposição?, perguntaram nos anos 1990

 

A certa altura de Meia-noite em Paris, num passeio pelos ensolarados jardins do Museu Rodin, um professor pedante teima em confrontar a guia. Interpretada pela Carla Bruni, ela esclarece que a escultora Camille Claudel manteve um affaire duradouro com seu mestre Auguste Rodin, mas nunca foi sua titular. E nada de o teimoso reconhecer que se enganara.

Antes de assistir ao filme do Woody Allen, eu ignorava o estatuto do caso entre os artistas franceses, mas sabia que havia muito ambos tinham ido desta para melhor. Nos anos 1990, uma jornalista não sabia.

Corria no Rio a entrevista coletiva às vésperas da abertura de uma retrospectiva da obra de Rodin (1840-1917). Ansiosa, a repórter atropelou os promotores: “Afinal, o Rodin vem ou não vem para a exposição?” Só se ressuscitasse. Não seria novidade, pois o jornalismo habituou-se a condenar e erguer da cova personagens à revelia de suas condições biológicas.

Conheci um chefe de reportagem pouco afeito à leitura do noticiário que costumava ordenar em tom de sargento: “Vamos ouvir fulano”. Como volta e meia o candidato a entrevistado já batera as botas, um gaiato sugeria para a missão o colega que alegava ter intimidade com os espíritos.

Com a internet, a pressa produziu desastres ao contrário, expedindo atestado de óbito a gente cujo coração pulsava. Uma agência noticiosa colocou no ar em 2008, com três anos de antecedência, o obituário do Steve Jobs. Um jornal estampou em seu site que o jornalista Zuenir Ventura se despedira da vida _para nossa sorte, ele segue vivo e afiado.

A internet está longe de culpa exclusiva. Outro dia uma leitora escreveu para uma revista impressa avisando que, dada como defunta pela publicação, ela estava vivíssima. Eu mesmo matei no papel uma irmã errada, confiando no cunhado atrapalhado que trocou o nome da falecida.

Nada, em termos de subversão histórica, equivalente ao diário que saiu com o “furo” involuntário contando que Jesus Cristo teria sido enforcado, e não crucificado _a correção logo veio.

No jargão das redações, informação errada grosseira se chama barriga. Em 1987, quando Carlos Drummond de Andrade morreu, a TV Manchete pretendeu reverenciá-lo encerrando o telejornal noturno com Ney Matogrosso cantando Rosa de Hiroshima. O apresentador disse que os versos eram de autoria do poeta mineiro, mas são do carioca Vinicius de Moraes. Baita barriga.

(Publicado originalmente na revista Azul Magazine, setembro de 2014)

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