Sabáticas: Um alérgico entre livros
Mário Magalhães
Para um alérgico incurável como eu, arrumar os livros equivale a um ancião ou uma anciã se enredar num affaire com uma criatura fogosa de 20 anos de idade: a paixão tem que ser doida demais para contornar as vicissitudes da saúde cansada de guerra. É o que acabo de fazer _transferir a minha biblioteca, bem entendido.
Modesta, ela está dezenas de milhões de páginas aquém das coleções de bibliófilos como foi José Mindlin. Mas organizei uns poucos milhares de volumes, limpando um por um. Espirrei como não espirrava havia tempos.
O que era para ser feito com mais presteza tardou, culpa de certos livros, sobretudo de suas aberturas. Como ensinam os mestres da literatura e mesmo os escribas dentes de leite sabem, na largada se seduz ou se perde o leitor. Parando para reler tantas delas, atrasei-me.
Ana Karênina, do Tolstói, é de revirar o estômago: “Todas as famílias são parecidas entre si. As infelizes são infelizes cada uma à sua maneira”. Em O Grande Gatsby, do Fitzgerald, uma lição familiar antecede a devastação: “Em meus anos mais vulneráveis de juventude, meu pai me deu um conselho que jamais esqueci: ‘Sempre que tiver vontade de criticar alguém’, ele disse, ‘lembre-se de que ninguém teve as oportunidades que você teve’”.
Pai e filho são também personagens de Cem Anos de Solidão, obra-prima do García Márquez cujo prólogo multidões de colombianos recitam de cabeça: “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía haveria de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo”.
O Érico Verissimo encerra assim o parágrafo inaugural de O Tempo e o Vento: “Era tanto o silêncio e tão leve o ar, que se alguém aguçasse o ouvido talvez pudesse até escutar o sereno da solidão”.
Entre os títulos de não ficção, sinto o golpe sadomasoquista (pois a autora é jornalista) da Janet Malcolm no ensaio O Jornalista e o Assassino: “Qualquer jornalista que não seja demasiado obtuso ou cheio de si para perceber o que está acontecendo sabe que o que ele faz é moralmente indefensável”.
Agora me dou conta de que A Metamorfose sumiu. O Kafka começa narrando o despertar de Gregor Samsa transformado em um inseto. Vou procurar o livro. Atchim!
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A crônica reproduz traduções de autoria de Mirtes Ugeda (Tolstói), Vanessa Barbara (Fitzgerald) e Tomás Rosa Bueno (Malcolm).
(Publicado originalmente na revista Azul Magazine, outubro de 2014)