Blog do Mario Magalhaes

Morre político que brigou em peça de Nelson e pediu impeachment de Getulio

Mário Magalhães

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Wilson Leite Passos, em 2000, com o Municipal ao fundo – Foto Américo Vermelho/Folhapress

 

Há personagens da história que, embora coadjuvantes, às vezes a retratam com mais riqueza do que muitos protagonistas.

Wilson Leite Passos, que morreu aos 89 anos, era um deles.

Por uma eternidade, foi vereador no Rio, com breve passagem pela Câmara dos Deputados.

Dedicou a vida à pregação da eugenia, panaceia nazistoide destinada alegadamente à purificação da raça e ao dito aprimoramento genético.

Militante pioneiro da União Democrática Nacional, protocolou em 1954 o pedido de impeachment do presidente Getulio Vargas, como recordei aqui.

Em 1957, armou um salseiro na estreia da peça ''Perdoa-me por me Traíres'', de Nelson Rodrigues.

Guardava uma pistola alemã, presente de um oficial nazista, conforme me disse em 2000.

Encheu o peito ao falar da arma: ''Deve ter matado muito russo, muito comunista''.

Leite Passos morreu na sexta-feira, de câncer. O que será que a viúva fará com a pistola?

Abaixo, reproduzo uma croniqueta e uma reportagem que escrevi sobre ele.

Mais do que um perfil jornalístico, Wilson Leite Passos vale um livro, uma biografia.

*

A pistola do nazista

A cidade do Rio tem novo vereador, o incansável octogenário Wilson Leite Passos. O suplente assume o oitavo mandato, na vaga de um colega eleito para a Assembleia.

Dos poucos políticos da ativa com atuação inaugurada na ditadura do Estado Novo (1937-1945), da qual foi opositor, ajudou a fundar a UDN. Acompanhá-lo no presente é como viajar no túnel do tempo.

No ano passado, na campanha malsucedida à Câmara Federal, o ex-udenista manteve pelo PFL o slogan, inescrutável para o eleitorado, ''o candidato do brigadeiro''.

Ao contrário do que poderia pensar um vestibulando cujas respostas errantes viram piada na internet, não alardeava o apoio ao comércio de doces. Era isso mesmo: ufanava-se de ser o favorito do falecido brigadeiro Eduardo Gomes, herói do levante tenentista de 1922 e o derrotado mais notável das disputas presidenciais de 1945 e 1950.

Ainda hoje Passos prega a eugenia, a ideia de purificação racial que conheceu certa influência no Brasil na década de 1930 e tem evidente parentesco com o nazismo.

De volta à cena, promete combater a ''degradação moral''. Foi o que fez à sua maneira, já vereador, há meio século. Ao fim de ''Perdoa-me por me Traíres'', no Teatro Municipal, sacou a pistola Walther 7.65. O motivo era defender a honra das ''famílias ofendidas'' pela peça de Nelson Rodrigues. Diz que não chegou a atirar. Há controvérsia.

Alguns anos atrás, segredou que guardava a arma em casa, bem azeitada. Orgulhou-se: ''Como pertenceu a um oficial alemão da Segunda Guerra, deve ter matado muito russo, muito comunista''. Parlamentar conservador e de rara aplicação, não há de ter desleixado _aposto que a Walther continua em forma para novas e peculiares batalhas.

(''Folha de S. Paulo'', 12.fev.2007)

*

O anti-Nelson Rodrigues

Delirante, o tio Raul interpretado por Nelson Rodrigues diz para a sobrinha Glorinha, confundindo-a com Judite, a cunhada envenenada por ele: ''Mas nem teu marido, nem teus amantes, ninguém te beijou na hora em que morrias. Só eu''.

Um minuto depois, quando as cortinas se cerraram em 19 de junho de 1957, ao fim do terceiro e último ato da estreia de ''Perdoa-me por me Traíres'', aplausos e vaias, ovações e urros dividiram o Teatro Municipal do Rio.

Era a nona peça escrita pelo já consagrado Nelson e a primeira em que ele expunha a assumida carência de vocação para ator.

No balcão nobre, segundo andar à esquerda de quem assistia ao espetáculo, o vereador da conservadora UDN (União Democrática Nacional) Wilson Leite Passos gritava: ''É um absurdo ceder o Teatro Municipal para um espetáculo com cenas que ofendem o decoro, a boa linguagem''. Na confusão, revelou-se a pistola Walther, modelo PP, calibre 7.65 que o parlamentar carregava à cintura. A arma era presente de um oficial nazista que lutara na Segunda Guerra.

Um espectador extasiado foi atingido por um soco de Leite Passos, voou sobre três cadeiras e, sempre conforme o vereador, desesperou-se: ''Ele vai atirar!''.

Às vésperas do 20º aniversário da morte de Nelson Falcão Rodrigues, o maior dramaturgo brasileiro, e 43 anos depois do quiproquó do Municipal, Leite Passos, 74, diz à ''Folha'': ''Talvez hoje, na TV, o Nelson fosse considerado uma noviça, e não uma noviça rebelde. Comparando com o que aparece hoje, com o maior despudor e descaramento, Nelson era uma freirinha''.

Nascido em Recife, em 1912, e criado no Rio, Nelson morreu em 21 de dezembro de 1980, aos 68.

Celebrizado como um ''anti-Nelson'' por causa do entrevero que protagonizou em 1957, registrado em três páginas de ''O Anjo Pornográfico'' (Cia. das Letras, 1992), biografia do dramaturgo de autoria de Ruy Castro, o ainda vereador (PPB) _não-reeleito para o sétimo mandato não-consecutivo_ Wilson Leite Passos nem cogita assistir às novas montagens.

Da lavra rodriguiana, tudo o que viu sobre o palco foram alguns minutos do ato final de ''Perdoa-me por me Traíres''. ''Foi o suficiente, a pitada foi forte'', diz Leite Passos.

''No teatro dele não me agradam o estilo e a temática, que ajuda a degradação da sociedade e dissemina práticas que nada acrescentam. Sou conservador.''

O hoje vereador em fim de mandato começou a frequentar óperas (é fã de Richard Wagner), concertos (foi um dos primeiros sócios da Orquestra Sinfônica Brasileira) e peças (admira Arthur de Azevedo) no Municipal em 1943, ano da estreia, no mesmo teatro, de ''Vestido de Noiva'', segunda das 17 peças de Nelson.

Sempre quis distância do que sugerisse pornografia, desejos, taras, mergulhos em certos compartimentos incertos da alma humana. Para ele, isso significava distância de Nelson Rodrigues.

''Eu era muito mais rigoroso do que hoje, mais intransigente'', relembra. Naquele dia de 1957, passava pela calçada do Municipal quando dezenas de pessoas se retiravam, chocadas com ''Perdoa-me por me Traíres''.

Leite Passos entrou, foi para o balcão nobre, acabou imprensado no parapeito ''por um cidadão'', reagiu, deu um soco e deixou ver a pistola alemã.

''Nem peguei nela'', afirma. ''Mas começou uma confusão, inclusive no palco. O Nelson, muito inteligente, espalhou que eu tinha dado um tiro. Incluiu isso nas memórias dele. Eu me divertia muito com isso.''

Até hoje o vereador nega ter sacado a arma. ''O meu velho dizia que ele puxou o revólver'', diz o jornalista Nelson Rodrigues, filho, 55, segundo filho de Nelson com Elza Bretanha Rodrigues. ''O velho gozava a situação, diminuindo a importância de sacar o revólver, dizendo que ele (Leite Passos) queria fuzilar o texto. Como dizia que as senhoras grã-finas cavalgavam nas costas das cadeiras, urravam. Mas nunca disse que houve tiro.''

O ''anti-Nelson'' não fala com rancor do antípoda estético: ''Era uma questão de gosto pessoal. Nelson morava perto de mim, no Leme (zona sul carioca). Tantas vezes passou por mim, nos cumprimentamos''.

O vereador não forma exclusivamente a trincheira dos críticos. Reconhece em Nelson ''alta inteligência, estilo brilhante e grande criatividade''. ''Tirando a dramaturgia, tinha grande admiração por ele. Li suas memórias. As crônicas eram inteligentes e oportunas.'' A raiz dessa concessão é política. ''Nelson defendia teses de ordem política e ideológica com as quais eu concordava. Era anticomunista, e eu sempre fui anticomunista.''

Nos anos 50, Leite Passos andava armado porque temia ataques de esquerdistas. A pistola Walther hoje está em casa, azeitada, pronta para ser usada, se necessário. Com um sorriso, o vereador especula: ''Como pertenceu a um oficial alemão da Segunda Guerra, a arma deve ter matado muito russo, muito comunista''.

(''Folha de S. Paulo'', 1.dez.2000)

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