Blog do Mario Magalhaes

Em São Paulo, nesta 6ª, ato em memória do grande brasileiro César Teles

Mário Magalhães

 

Carlos Alberto Brilhante Ustra (1932-2015), oficial do Exército Brasileiro, foi um torturador.

O que comprova essa condição não são somente as numerosas testemunhas e os incontáveis documentos sobre sua passagem pelo maior campo de concentração urbano mantido pela ditadura (1964-1985), o DOI (Destacamento de Operações de Informações) do II Exército.

Lá, em São Paulo, Ustra comandou de 1970 a 1974 a engrenagem de violência, sadismo, assassinato e sumiço de corpos de cidadãos que lutavam contra a ditadura.

Ustra era torturador, sentenciou a Justiça no século 21. Um covarde a serviço do Estado.

Se hoje até a Justiça autoriza a chamar o verdugo de torturador, isso se deve à coragem de uma família.

Em 2006, Maria Amélia, César, Janaína e Édson Teles, em conjunto com Criméia Almeida, ingressaram com uma ação civil declaratória contra Ustra.

Reivindicavam que o militar fosse declarado autor de tortura e sequestro, logo torturador e sequestrador.

A história que os cinco viveram está contada mais abaixo, numa reportagem que eu escrevi na ''Folha'' em 2006.

Resumindo-a, em dois retratos:

ao ver os pais, Maria Amélia e César, sendo retirados da sala de tortura do DOI, o filho caçula, Édson, indagou: ''Por que vocês estão verdes?'';

evidentemente grávida, como demonstrava a barriga de sete meses, Criméia foi torturada até com eletrochoques.

A declaração da Justiça qualificando Ustra como torturador, emitida em 2008 e mais tarde referendada por instância judicial superior, foi uma luz de civilidade em meio às trevas da impunidade _Ustra morreu sem ser julgado criminalmente.

Um dos heróis dessa batalha democrática, César morreu no finzinho de 2015, aos 71 anos.

Ele será homenageado nesta sexta-feira (26 de fevereiro), a partir das 18h30, com um ato na Câmara Municipal de São Paulo.

César dedicou sua vida a tentar a ajudar os mais pobres. Torcedor do Atlético-MG, gostava de bater bola. Foi sindicalista ferroviário. Era exímio dançarino de salão. Lutou contra a ditadura. Adorava orquídeas. Foi o responsável pela logística da Guerrilha do Araguaia. Cantava óperas. Penou cinco anos na prisão, participou das campanhas da Anistia e das Diretas Já. Cobrou o paradeiro dos desaparecidos políticos, exigiu castigo legal aos violadores dos direitos humanos.

César Augusto Teles se foi em 28 de dezembro. Pegadinha da história, 43 anos cravados depois de ter sido preso e levado para o inferno comandado por Ustra.

É do jogo concordar ou discordar dos caminhos de César. O certo é que, se todo brasileiro tivesse a coragem e a dignidade que ele teve, o Brasil seria bem melhor.

(Abaixo, a reportagem de 2006.)

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Militar vira réu em processo por tortura durante a ditadura

Depois de a União reconhecer sua responsabilidade pela tortura, morte e desaparecimento de opositores durante a ditadura (1964-85), a Justiça agora é chamada a se pronunciar sobre os atos de um dos mais destacados agentes dos órgãos de segurança dos anos 70: Carlos Alberto Brilhante Ustra, 74, hoje coronel reformado do Exército. Cinco pessoas de uma família processam Ustra, acusando-o de seqüestro e tortura em 1972 e 1973.

Embora os advogados dos autores neguem que o pedido contrarie a Lei de Anistia (1979), o processo reabre a discussão sobre a impunidade de funcionários públicos que cometeram crimes contra os direitos humanos.

Na Argentina, as ''leis do perdão'' foram revogadas, e os acusados por tortura na ditadura militar do país (1976-83) são submetidos a julgamento.

A ação civil é declaratória: não implica pena ou indenização pecuniária. Pede a declaração de ocorrência de danos morais e à integridade física.

Advogados e entidades de direitos humanos consultados pela ''Folha'' afirmam desconhecer a existência de ações contra funcionários dos governos militares -antes foram contra o Estado. Ustra se diz ''o primeiro militar que eles buscam sentar no banco dos réus''.

Em 1985 a atriz Bete Mendes, ex-militante da luta armada contra a ditadura, apontou o coronel como seu antigo torturador, mas não o processou.

Ustra é réu no processo 05.202853-5, da 23ª Vara Cível do Foro Central de São Paulo. Os autores da ação são o casal Maria Amélia de Almeida Teles, 61, e César Teles, 62; seus filhos Janaína Teles, 39, e Édson Teles, 38; e Criméia Almeida, 58, irmã de Maria Amélia.

A história que eles narram consta do ''Brasil: Nunca Mais'', projeto da Arquidiocese de São Paulo. O caso dos irmãos Janaína e Édson ganhou relevo no capítulo referente a vítimas crianças.

Eles tinham 5 e 4 anos quando foram parar nas dependências paulistas do DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações -Centro de Operações de Defesa Interna). O comandante da unidade era Ustra, o ''Tibiriçá''.

A denúncia

Responsáveis pela gráfica do então clandestino Partido Comunista do Brasil, César e Maria Amélia foram presos em dezembro de 1972 junto com o dirigente Carlos Danielli, que foi torturado e morto no DOI-Codi, conforme conclusão, após o fim da ditadura, da Comissão de Mortos e Desaparecidos do Ministério da Justiça.

Grávida, Criméia foi detida no dia seguinte. Os sobrinhos foram levados com ela para o DOI-Codi, na rua Tutóia.

Maria Amélia lembra que recebeu choques elétricos, injeções do dito ''soro da verdade'' e humilhações diversas, além de ter sido posta no pau-de-arara.

César descreve golpes de palmatória, choques e tapas nos ouvidos (''telefone''). Queimaduras de cigarro no seu pé direito obrigaram-no a fazer transplante de pele.

Criméia afirma que, ao chegar no DOI-Codi, viu sua irmã e o cunhado sendo retirados da sala de tortura ''com equimoses por todo o corpo''. ''Meu sobrinho [Édson], ao vê-los, perguntou: ''Por que vocês estão verdes?''', disse ela.

De acordo com Criméia, mesmo grávida de sete meses ela foi seviciada com espancamento, murros na cabeça, palmatória de madeira nos pés e nas mãos e até choques.

''Eu e minha irmã fomos torturadas para que assinássemos um papel em que consentíamos que eles fizessem o aborto.''

Depois de nascido, o menino João Carlos de Almeida Grabois soluçava ao ouvir barulhos estridentes.

Maria Amélia e Criméia relatam a participação direta de Ustra na tortura. César diz que o comandante ordenava: ''Bate nesse, bate naquele''. Eles reconheceram o militar ao ver suas fotos publicadas após a denúncia de Bete Mendes.

Os pais dizem que os filhos foram usados para pressioná-los a fornecer informações -se não falassem, Janaína e Édson ''seriam torturados e mortos''.

A ação qualifica os atos contra os irmãos como tortura psicológica. Eles ficaram meses na casa de uma policial cuja identidade até hoje ignoram.

Aos 6 anos, Janaína entrou em processo de puberdade precoce. Aos 28, a menopausa se manifestou precocemente. Édson passou anos sem conversar com ninguém.

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Família diz que objetivo é acabar com a impunidade

O que faz uma família cutucar feridas como as dos Almeida e dos Teles mais de 30 anos depois dos seis meses em que os adultos contam ter sido torturados e seus filhos estiveram longe deles e de outros parentes?

''A história deve ser contada como aconteceu, para que não se repita'', diz a professora Maria Amélia de Almeida Teles. Como o marido e a irmã, ela não milita mais no PC do B.

O aposentado César Teles responde à contestação do coronel Ustra sobre a demora para acionar a Justiça: ''Denunciamos o que houve assim que saímos do pau-de-arara'' -os autos de um processo da década de 1970 confirmam.

A historiadora Janaína Teles diz que a opção pelo processo contra o comandante do DOI-Codi -e não o Exército e a União- ocorreu porque ''as pessoas que morreram na ditadura tinham nomes, sentimentos e história''. ''Os que mataram, também'', afirma.

Para a enfermeira Criméia de Almeida, ''o que caracterizou a anistia foi a impunidade''. Seu filho João Carlos, que ela esperava quando ficou presa, hoje tem 33 anos e é empresário.

César diz que quem idealizou a ação foram seus filhos. ''No início, fiquei com medo da reação do Ustra'', afirma o professor de filosofia Édson Teles. ''Eles [torturadores e militares participantes do aparato de segurança da ditadura] estão ativos, reunidos em grupos.''

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Coronel nega acusação e cita Lei de Anistia

A defesa do coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra se fundamenta em quatro argumentos: a negativa das acusações; eventuais crimes em 1972 e 1973 não poderiam mais ser punidos; a ação deveria ser contra a União, e não seu servidor militar; a Lei de Anistia (1979) beneficiaria os agentes dos órgãos de segurança que combateram a oposição.

Ustra afirmou à ''Folha'' seguir orientação dos advogados para não conceder entrevista. Fez breves comentários e qualificou as denúncias como ''mentiradas''. Disse que acusadores ficam ''inventando coisas'' e ''mulheres mentem''. ''Com essas coisas que esse povo faz [relatos de sevícias], aquele negócio todo, tem horas que a gente desiste de viver.''

Ustra comandou o DOI-Codi de São Paulo de setembro de 1970 a janeiro de 1974. Nesse período, pelo menos 40 presos foram assassinados em suas instalações, conforme o jornalista Elio Gaspari no livro ''A Ditadura Encurralada'' (Companhia das Letras, 2004) e o ''Projeto Brasil: Nunca Mais''.

Advogados do coronel, Paulo Esteves, Sérgio Toledo e Salo Kibrit, afirmam no processo: ''Quanto às descrições de tortura (…), o réu [Ustra] jamais permitiria semelhante ato em um local que comandasse''.

Ustra divulgou um texto sobre a ação declaratória no site A verdade sufocada''. Nega ter havido seqüestro das crianças Janaína e Édson. Confirma, contudo, que os meninos estiveram no DOI-Codi.

Disse que aceitou pedido dos pais presos para que uma policial, que teria se oferecido, ficasse com as crianças.

Os defensores do militar escreveram que ''o réu [Ustra] agiu como representante do Exército no soberano exercício da segurança nacional''. Por isso, a União deveria responder.

Citam a Lei de Anistia como obstáculo ao prosseguimento do processo: ''[A lei] pressupôs esquecimento recíproco, de modo a apagar todos os fatos que ocorreram em determinado período e que tipificaram delitos políticos ou conexos''.

Fábio Konder Comparato, advogado dos autores da ação, disse que a Lei de Anistia não afeta o processo: ''[A lei] meramente diz respeito a crimes. Aqui não se trata de uma ação penal. É uma ação civil''.

(MM, ''Folha de S. Paulo'', 10.set.2006)

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