Blog do Mario Magalhaes

‘Na manjedoura’, uma crônica de Clarice Lispector para o Natal

Mário Magalhães

Pablo Picasso, La Colombe de la Paix, 1950, Pastel

''A pomba da paz'', de Pablo Picasso

 

Esta crônica da Clarice Lispector integra seu livro ''Para não esquecer'', de 1978.

Encontrei uma versão reduzida, publicada em jornal no Natal de 1962.

O desenho do Picasso é de meados do século 20. Foi feito para promover a campanha mundial pela paz, contra a proliferação de armas nucleares.

Um feliz Natal a tod@s.

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Na manjedoura

Por Clarice Lispector

Na manjedoura estava calmo e bom. Era de tardinha, ainda não se via a estrela. Por enquanto o nascimento era só de família. Os outros sentiam, mas ninguém via. Na tarde já escurecida, na palha cor de ouro, tenro como um cordeiro refulgia o menino, tenro como o nosso filho. Bem de perto, uma cara de boi e outra de jumento olhavam, e esquentavam o ar com o hálito do corpo. Era depois do parto e tudo úmido repousava, tudo úmido e morno respirava. Maria descansava o corpo cansado, sua tarefa no mundo seria a de cumprir o seu destino e ela agora repousava e olhava. José, de longas barbas, meditava; seu destino, que era o de entender, se realizara. O destino da criança era o de nascer. E o dos bichos ali se fazia e refazia: o de amar sem saber que amavam. A inocência dos meninos, esta a doçura dos brutos compreendia. E, antes dos reis, presenteavam o nascido com o que possuíam: o olhar grande que eles têm e a tepidez do ventre que eles são.

A humanidade é filha de Cristo homem, mas as crianças, os brutos e os amantes são filhos daquele instante na manjedoura. Como são filhos de menino, os seus erros são iluminados: a marca do cordeiro é o seu destino. Eles se reconhecem por uma palidez na testa, como a de uma estrela de tarde, um cheiro de palha e terra, uma paciência de infante. Também as crianças, os pobres de espírito e os que amam são recusados nas hospedarias. Um menino, porém, é o seu pastor e nada lhes faltará. Há séculos eles se escondem em mistérios e estábulos onde pelos séculos repetem o instante do nascimento: a alegria dos homens.

(Em ''Para não esquecer'', Rocco, edição digital.)