50 anos nesta noite: Quem cala sobre teu corpo consente na tua morte
Mário Magalhães
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Quem cala sobre teu corpo
Consente na tua morte
Talhada a ferro e fogo
Nas profundezas do corte
Que a bala riscou no peito
(''Menino'', de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos)
A moça da foto era alagoana, media 1,55 metro da sola dos pés até o cocuruto e tinha completado 22 anos em 12 de janeiro de 1972. Agentes do Dops paulista a mataram dez dias depois do aniversário.
Trucidaram-na com 34 lesões, ''a maioria produzida por tiros, inclusive um à queima-roupa, além de facada, fraturas, lesões e equimoses por todo o corpo'', documenta o ''Dossiê ditadura: Mortos e desaparecidos políticos no Brasil, 1964-1985''.
A moça se chamava Gastone Lúcia Carvalho Beltrão. Era mais jovem do que hoje é a minha filha mais velha. Feriram-na a bala, a faca, a sabe-se-lá-o-quê. Até matá-la.
Gastone nascera em Coruripe, estudara em Maceió, mudara-se para o Rio e voltara a Alagoas para cursar economia.
Largou tudo para se dedicar à luta armada contra a ditadura em vigor. Tornou-se guerrilheira da ALN, Ação Libertadora Nacional, a organização de Carlos Marighella e Joaquim Câmara Ferreira.
Quem cala morre contigo
Mais morro que estás agora
Relógio no chão da praça
Batendo, avisando a hora
Que a raiva traçou
No incêndio repetindo
O brilho de teu cabelo
Os tiras do Departamento de Ordem Política e Social relataram que a morte de Gastone ocorrera em tiroteio.
Peculiar tiroteio: a facada exige proximidade, bem como um tiro disparado não de longe, mas com a arma grudada ao corpo _o disparo à queima-roupa e outros ferimentos foram constatados pelo perito criminal Celso Nenevê na década de 1990.
Em 1972, os médicos-legistas Isaac Abramovitc e Walter Sayeg haviam assinado laudo sustentando que Gastone não fora morta por ''tortura'' ou ''outro meio insidioso''.
Se execução não é ''meio insidioso'', sucumbe a civilização.
Quem grita vive contigo
Em agosto de 1996, numa decisão unânime da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, da qual participava representante das Forças Armadas, a União reconheceu que Gastone não fora morta em ''violento tiroteio'', e sim depois de presa.
Como Gastone, outras mulheres foram assassinadas por agentes públicos daqueles tempos. Muitas foram humilhadas, estupradas, surradas, torturadas, empaladas.
E outros homens também, inclusive alguns nos quais a barba recém despontara.
É o de menos a opinião sobre as opções políticas de Gastone. Goste-se ou não do caminho que ela trilhou com valentia e generosidade, a guerrilheira estava sob custódia do Estado. Nem a lei (oficial) da ditadura permitia torturar e executar.
A ditadura matou no mínimo 396 cidadãos, dos quais cerca de 130 permanecem desaparecidos.
Enquanto persistir a impunidade dos agentes do Estado que violaram os direitos humanos naquela era sombria, novas gerações sofrerão nas mãos de funcionários públicos confiantes na permissão para barbarizar.
Quem grita vive contigo!
''Menino'', a canção de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, foi inspirada no estudante Édson Luís de Lima Souto.
Aos 18 anos, o rapaz pobre e com rosto de Garrincha quando jovem foi baleado no coração. Era março de 1968. Um policial militar o matou, no Rio, e a multidão alertou: ''Podia ser seu filho''.
Gastone também podia (seus restos repousam em cemitério de Maceió).
Hoje à noite, a noite de 1º de abril de 2014, fará 50 anos que o presidente constitucional João Belchior Marques Goulart se despediu de Brasília pela última vez, selando o golpe de Estado que o depôs e liquidou a democracia.
Por muito tempo, o Brasil e os brasileiros trocaram esperança, compaixão e solidariedade por indiferença e desencanto.
Calar sobre os matadores de Gastone e tantos cidadãos é consentir com as trevas.
Ainda é tempo de fazer justiça, julgando e punindo torturadores e assassinos.
É tempo de honrar Vladímir Maiakóvski.
O poeta russo escreveu: ''Dizem que em algum lugar, parece que no Brasil, existe um homem feliz''.
Felicidade e ditadura não nasceram uma para a outra.