Blog do Mario Magalhaes

Do arquivo secreto do Dops: gravação da Câmara expõe radicalização em 1964

Mário Magalhães

Gravações como as acima ficavam guardadas aqui, no antigo prédio do Dops – Foto Pedro Oswaldo Cruz/Acervo Inepac

 

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A gravação acima, dividida em três arquivos, soma uma hora, 2 minutos e 31 segundos, mas vale por dezenas de horas-aula de um bom curso de história do Brasil. Para ouvi-la, basta clicar em cima dos ícones.

O áudio original é contínuo _quebrei-o em três por inépcia.  Documenta um discurso do deputado Almino Affonso na Câmara, na virada de fevereiro para março de 1964, a um mês do golpe de Estado. Almino militava no PTB, a mesma agremiação do presidente João Goulart, e que nada tem a ver com o atual PTB de Roberto Jefferson.

O grande antagonista de Almino no debate-boca é o deputado Adauto Lúcio Cardoso, da UDN, o mais retumbante partido oposicionista.

O confronto retórico, em que ambos os contendores buscam se legitimar reivindicando a defesa da democracia, transcorre em torno de manifestações que impediram na marra correligionários dos dois de falar publicamente em várias cidades.

De um lado, barraram o deputado petebista Leonel Brizola, mais à esquerda do que seu cunhado Jango. Do outro, o governador da Guanabara (Estado equivalente ao hoje município do Rio), Carlos Lacerda, trombeta da direita.

A gravação foi guardada pela polícia política carioca, o Dops (Departamento de Ordem Política e Social). Não se sabe se foi enviada pela Câmara dos Deputados, se foi feita em Brasília por algum agente ou se, mais provável, foi gravada diretamente da transmissão radiofônica. Hoje o velho arquivo secreto do Dops integra o acervo do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro.

O pinga-fogo ensina muito sobre aqueles tempos de meio século atrás.

É constrangedora para os atuais parlamentares a comparação com o talento oratório de Almino e Adauto, azougues da palavra e homens ilustrados, embora Brizola e sobretudo Lacerda falassem ainda melhor. (Para ser justo, Almino demonstra ao microfone pensar mais rápido do que o então ex-governador do Rio Grande do Sul e futuro governador do Rio.)

O clima de radicalização já era indisfarçável, basta ouvir.

Próceres da UDN convocavam empresários e proprietários de terras a se armarem em defesa dos seus interesses, que os deputados entendiam ameaçados pelas reformas preconizadas por Jango. O belicoso deputado Padre Vidigal pregava ''armai-vos uns aos outros''. Incrivelmente, o governo assistiria à banda passar, até a consumação do golpe ao qual o presidente não resistiu.

À luz da história, Adauto encarnava o farisaísmo. Enquanto apregoava as virtudes da democracia, já se mancomunava com hierarcas do Exército para depor, sem votos, o presidente constitucional.

Se João Goulart tivesse tido a vontade política e a energia demonstradas pelo tribuno Almino, talvez tivesse encarado o golpe, ou pelo menos tentado.

Almino Affonso tinha 34 anos no dia do debate, Adauto, 59.

Adauto Lúcio Cardoso morreria em 1974. Partidário da ditadura por anos, acabou ministro do Supremo Tribunal Federal. Num gesto de democrata e liberal das antigas, pediu aposentadoria do STF em 1971, depois de votar sozinho contra um dispositivo de censura prévia a livros e periódicos instituído pelo governo, como registra o CPDOC da FGV (leia aqui).

Almino foi cassado pelos golpistas, amargou o exílio, e ao voltar reintegrou-se à vida nacional, contribuindo com numerosos governos. Tem hoje 84 anos.