Blog do Mario Magalhaes

‘O guerrilheiro gentleman’, ensaio de Carlos Fraenkel sobre o avô ‘Toledo’

Mário Magalhães

O jornalista Joaquim Câmara Ferreira, ao ser preso em janeiro de 1948

O jornalista Joaquim Câmara Ferreira, ao ser preso em janeiro de 1948

 

( O blog está no Facebook e no Twitter )

Carlos Fraenkel é docente dos departamentos de Filosofia e Estudos Judaicos da McGill University, em Montreal, no Canadá. E professor de Filosofia e Religião Comparada na Faculdade de Filosofia e na Faculdade de Teologia da Oxford University, no Reino Unido.

Seu nome reverencia o revolucionário brasileiro Carlos Marighella (1911-1969).

Foi um pedido do seu avô, Joaquim Câmara Ferreira, que Carlos Fraenkel não teve tempo de conhecer: Câmara foi assassinado na tortura, em outubro de 1970, pela equipe do delegado Sérgio Fernando Paranhos Fleury. A mesma turma que 11 meses antes fuzilara Marighella.

A revista ''Brasileiros'' traz em sua alentada edição de março um ensaio de dez páginas que Fraenkel escreveu sobre o avô. O trabalho foi publicado originalmente semanas atrás, na ''Nation'', a mais antiga revista norte-americana, fundada em 1865.

Um dos mais relevantes personagens da esquerda brasileira em todos os tempos, o jornalista Câmara Ferreira (1913-1970) foi preso e torturado na ditadura do Estado Novo (1937-1945); militou por mais de três décadas no Partido Comunista; em janeiro de 1948, foi em cana ao resistir de arma na mão à invasão policial ao jornal que ele comandava; fundou com Marighella a Ação Libertadora Nacional (ALN), maior organização da luta armada contra a ditadura instaurada em 1964; constituiu uma espécie de comissário político do sequestro do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick, em setembro de 1969; até ser trucidado pelos tiras do Dops paulista.

Câmara Ferreira era também conhecido pelos nomes de guerra ''Toledo'' e ''Velho''. Discreto, não tem o reconhecimento que a história do Brasil lhe deve, goste-se ou não dele e de suas ideias. O inspirado ensaio do neto ajuda a conhecê-lo melhor.

* * *

O guerrilheiro gentleman

Por Carlos Fraenkel 

Gentleman não é propriamente o primeiro atributo que nos vem à mente quando pensamos em revolucionários latino-americanos, de Simón Bolívar a Fidel Castro. No entanto, é assim que parentes, amigos e companheiros políticos descrevem o meu avô, Joaquim Câmara Ferreira. Junto com Carlos Marighella e Carlos Lamarca, ele foi um dos protagonistas mais destacados da luta armada contra a ditadura militar instalada no Brasil de 1964 a 1985. Ele é conhecido, em particular, como o estrategista político do golpe mais espetacular do movimento de guerrilha brasileiro: o sequestro, em setembro de 1969, do embaixador americano Burke Elbrick, que, tendo ficado detido três dias, foi colocado em liberdade em troca de 15 presos políticos. Essa ação fez com que meu avô se tornasse um dos principais inimigos do Estado. Meu tio lembra-se de uma noite, quando jogava bilhar em um bar: “De repente, um amigo me perguntou ‘Esse não é seu pai?’. Quando olhei para cima, vi sua foto em um cartaz de ‘Terroristas Procurados’ ao lado do balcão”. Menos de um ano depois, o regime o prendeu, torturou e matou.

Um guerrilheiro gentleman? Muitos dos que o conheceram até hoje tentam entender essa aparente contradição. Lembram-se dele como pessoa afável, tolerante e despretensiosa. Durante décadas, foi um dos líderes do Partido Comunista Brasileiro, responsável, em particular, pelas ações do partido na imprensa (sobretudo em jornais). E por que ele, tendo já ultrapassado com folga os 50 anos, decidira trocar a máquina de escrever pela metralhadora? A transição não fora fácil. “Começar um treinamento militar na minha idade!”, disse ele não sem auto-ironia a um amigo em Cuba, onde brasileiros da organização de resistência que ele ajudara a fundar preparavam o combate guerrilheiro. Não obstante, ele participou das aulas de tiro todos os dias.

Minha mãe estava grávida de mim quando meu avô morreu. A última carta escrita por ele foi endereçada a meus pais, que haviam se estabelecido na Alemanha Ocidental como refugiados políticos. “Será que realmente tenho idade para ser avô?”, ele brincou, e perguntou se eles iriam honrar “nosso grande País” mediante a escolha de meu nome: Rosa, de Rosa Luxemburgo, se fosse uma menina, e Carlos, de Carlos Marighella, se fosse um menino.

A vida do meu avô esteve ligada à de Marighella por décadas de militância no Partido Comunista Brasileiro. Mas a decisão mais radical que tomaram juntos foi a de deixar o partido em 1967 para fundar a Ação Libertadora Nacional (ALN), que se tornou a maior e mais importante organização de luta armada no Brasil. Em 1969, Marighella escreveu o Minimanual do Guerrilheiro Urbano, em que falava da experiência de adaptar às grandes cidades brasileiras a tática de guerrilha desenvolvida por Che Guevara e outros para o meio camponês de Cuba. O Minimanual passou a ser leitura obrigatória para os movimentos militantes no mundo inteiro, desde as Brigate Rosse, na Itália, até a Symbionese Liberation Army, nos Estados Unidos, sem mencionar os grupos revolucionários na América Latina. No exílio, também meus pais se depararam com o Minimanual quando a Rote Armee Fraktion (RAF) o utilizou para instalar o terror na Alemanha Ocidental durante o governo social-democrático. A República Federal da Alemanha, pretendia a RAF, nada mais era do que um fascismo camuflado. Meus pais, que defendiam uma linha política de centro-esquerda, não compraram a ideia. Em uma foto minha, com 2 anos de idade, eu vestia um anoraque com um autocolante que dizia “Willy wählen” (“Vote em Willy”), uma referência a Willy Brandt, o líder do Partido Social-Democrata da Alemanha naquela altura.

Ainda que eu jamais tivesse encontrado meu avô pessoalmente, consegui conhecê-lo bastante bem por meio de uma biografia política escrita pelo historiador brasileiro Luiz Henrique de Castro Silva, lançada em 2010, por ocasião de uma cerimônia em homenagem ao meu avô no Memorial da Resistência em São Paulo. O memorial está localizado em um lugar emblemático, o antigo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), um dos instrumentos da ditadura para aniquilar a oposição política. No auditório lotado, a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça pediu solenemente desculpas pelos crimes cometidos pelo Estado brasileiro contra o meu avô. Ele foi declarado “herói do povo brasileiro” e cidadão honorário de São Paulo.

Esse reconhecimento póstumo é parte de uma ampla reavaliação do período da ditadura militar, processo que teve início em 1995 com a Lei dos Desaparecidos e a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e adquiriu vigor quando o Partido dos Trabalhadores (PT), liderado por Luiz Inácio Lula da Silva, venceu as eleições em 2002. Os esforços culminaram na Comissão Nacional da Verdade, criada pela sucessora de Lula, Dilma Rousseff, que havia participado da resistência armada como estudante e fora detida em 1970, sendo torturada e ficando presa durante três anos. Uma boa amiga de minha mãe dividiu uma cela com ela. O mandato da Comissão consiste em trazer à luz as violações de direitos humanos cometidas pelo Estado brasileiro entre 1946 e 1988, com enfoque especial sobre o período da ditadura militar. Esse projeto é tão controverso quanto importante: o que está em jogo é nada menos do que a memória histórica do Brasil. Qual o cenário em que ela se insere? Quem tem o direito de fazer parte dela e qual o papel que lhe é atribuído? Era o meu avô um terrorista e bandido ou um lutador pela liberdade e pela justiça? Foram os seus torturadores carrascos de um regime tirânico ou defensores de uma ordem política justa?

Para ler a íntegra basta clicar aqui.