Blog do Mario Magalhaes

Por vaga de garagem, homem mata mulher a facadas e retrata tempo de ódio
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Mário Magalhães

Tatiana França, assassinada aos 35 anos – Foto reprodução Facebook

 

Surtos de fúria não são novidade. Adão e Eva talvez não tenham se engalfinhado pelo fruto proibido só porque descobriram antes o prazer de compartilhá-lo.

Não é preciso ir muito longe, aos Estados Unidos, para lembrar episódios de insanidade. Lá, veteranos de guerra traumatizados e jovens devastados pelo bullying matam de magote. Cá, ex-aluno perpetra matança em escola e perturbado abre fogo no cinema. Tão de repente que as vítimas não têm tempo de se proteger.

Como a advogada Tatiana França, no Rio. Em maio, ela mudou a foto da capa do seu perfil no Facebook, estampando uma declaração atribuída ao Ayrton Senna: ''Um dia a tristeza vai embora, aprendemos a sorrir novamente, fazemos novas amizades e vemos que todo aquele sofrimento do passado não valeu tanto a pena''.

O derradeiro sofrimento de Tatiana começou na manhã da quinta-feira, no prédio onde ela vivia, em Laranjeiras. Sem morar lá, José Carlos de Castro Martins estacionou seu carro na garagem reservada a moradores do edifício da rua Pereira da Silva. Teria ido visitar a ex-mulher. Como ele não é mais morador, condição para deixar o automóvel na garagem, Tatiana reclamou do abuso, como fizera outras vezes. Até aí, rolou o estresse comum a condomínios semelhantes.

Então o ensandecido homem de 66 anos empunhou uma faca e atacou a mulher de 35. Tatiana ficou caída diante do prédio, ensanguentada. Levada ao hospital, agonizou até morrer anteontem. O assassino está preso.

Mais um surto de fúria, é verdade. Numa época nublada pelo ódio, documenta-a como um retrato.

Uma discussão irrelevante _comparada à vida_ resulta em ato covarde e assassino. Tão covarde e assassino como o dos PMs que fuzilaram os cinco jovens negros em Costa Barros.

Quase todo mundo conhece gente que, nos últimos tempos, afastou-se por motivos menores de quem sempre lhe foi caro ao coração. Por motivos menores entenda-se quase tudo, inclusive política, ou melhor, politicalha. Não se tolera a diferença.

De política, esporte e geografia Tatiana gostava muito no Colégio Santo Inácio, como recordou sua colega Anna Luiza. As duas concluíram o ensino médio em 1997.

Em abril, Tatiana deu o toque, divulgando uma mensagem: ''Se a gente soubesse o quanto o carinho salva, a atenção alimenta e a união fortalece, não estaríamos perdendo uns aos outros todos os dias''.

O tempo não é de carinho. É de ira e perdas.

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PM desperdiçou chance de intervir em outubro no batalhão da matança do Rio
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Mário Magalhães

Filhos deste solo – Foto Júlio César Guimarães/UOL

 

A Polícia Militar do Estado do Rio fala em ''lamentáveis acontecimentos''.

O tenente-coronel Marcos Netto, em ''reação desproporcional''.

O governador Luiz Fernando Pezão, em ''erro''.

Todos adotam eufemismos para não pronunciar a palavra honesta: o que houve foi ''crime'', e quem comete crime é ''criminoso''.

São criminosos os policiais militares que no fim de semana fuzilaram cinco jovens negros no subúrbio carioca de Costa Barros.

É criminoso quem adultera cena de crime para forjar confronto inexistente. A farsa foi desmascarada por testemunhas do massacre e confirmada pela perícia.

Não é preciso aguardar o martelo da Justiça para saber que houve crime nas execuções.

Tão importante quanto chamar as coisas pelo nome, ''crime'', é a exigência de punição.

Mais ou tão relevante é entender no episódio por que PMs são capazes de barbarizar sem maiores temores de castigo legal.

O epílogo da vida de Roberto, Carlos Eduardo, Cleiton, Wilton e Wesley, rapazes de 16 a 25 anos, poderia ter sido diferente se diferente tivesse sido o comportamento da cúpula da PM um mês atrás.

Porque talvez os PMs Thiago, Marcio e Antonio não tivessem atirado para matar, e o colega Fabio não se associasse a eles na fraude processual, se o comando do 41º Batalhão tivesse mudado quando era para mudar.

No finzinho de outubro, um sargento do mesmo 41º BPM matou dois mototaxistas desarmados na Pavuna. Não foi preso. Alegou ter confundido com arma o macaco hidráulico que os trabalhadores carregavam numa moto. Tiago, que dirigia, foi morto sem conhecer o filho que nasceria em novembro.

O coronel Marcos Netto foi mantido no comando. Ignoro se ele é bom ou mau profissional, boa ou má pessoa. Mas a mensagem implícita na decisão da PM do Rio foi que matar inocente dá em nada.

Os dois que estavam na moto foram mortos com um só tiro. Os carro onde estavam os cinco assassinados foi alvejado mais de meia centena de vezes. Muda a forma, segue a matança.

Antes, Netto foi prestigiado.

Agora, exonerado.

E se tivesse sido afastado em outubro, numa intervenção exemplar, com um brado de ''chega'' aos PMs do batalhão?

Não era caso isolado o dos mototaxistas, informou o Instituto de Segurança Pública. Como contaram os repórteres Antônio Werneck, Elenilce Bottari e Paolla Serra, ''de janeiro de 2011 a outubro deste ano [2015], ocorreram 323 mortes em intervenções policiais na área do 41º BPM (Irajá)''. Treze por cento das mortes dessa natureza em todo o Estado, muito acima da média.

O sangue estava correndo. Ninguém interveio _com ações, e não palavras_ para interromper a hemorragia.

A impunidade é o maior estímulo para o crime. Qualquer crime, sobretudo os que tiram a vida.

Deve ser punido quem atira ferindo a lei.

E o comandante de policiais que matam covardemente não pode continuar no comando como se nada tivesse acontecido.

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Sob vaia, candidatura de Pedro Paulo agoniza. Mistérios cercam a de Romário
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Mário Magalhães

Pedro Paulo, pré-candidato do PMDB a prefeito do Rio – Foto Ricardo Borges/Folhapress

 

Ao menos até a semana retrasada, havia nos círculos mais próximos a Eduardo Paes a esperança de que a rejeição à pre-candidatura do secretário Pedro Paulo a prefeito do Rio se circunscrevesse à zona sul mais abastada da cidade. As vaias de ontem em Madureira assinalam o adeus às ilusões.

Os apupos contra Pedro Paulo no subúrbio ocorreram na inauguração da Casa do Jongo. Ele foi ''vaiado por um pequeno grupo de mulheres enquanto discursava'', anotou reportagem. Pequeno, mas barulhento e combativo. Uma jovem exibiu um pequeno cartaz escrito em folha de caderno: ''Pedro Paulo bate em mulher''.

O recado de Madureira tabela com o sentimento que se espalha entre os cariocas. Na quinta-feira, a colunista Cora Rónai referiu-se a ''Pedro Paulo, o espancador''.

Agoniza o projeto de sucessão desenhado por Eduardo Paes. O prefeito triunfaria na eleição de 2016 com o candidato escolhido por ele. Assim reforçaria seu cacife para o pleito presidencial como postulante do PMDB. Até segunda ordem, o PT do Rio se manteria vinculado ao prefeito _o vice de Paes é petista.

O plano desmorona em virtude de três motivos: o currículo de Pedro Paulo, alguns bons serviços jornalísticos e o espírito do tempo.

Repórteres documentaram dois registros policiais de agressões do secretário à ex-mulher. Além de um sobre ameaça de ''sumir'' com filha criança. Primeiro, Pedro Paulo negou uma agressão. Em seguida, reconheceu-a, mas assegurou que havia sido uma só. Logo surgiu prova de outra, que ele também admitiu.

É direito dos cidadãos conhecer o comportamento e as ideias de quem pretende governar. Só foi possível saber mais sobre a trajetória de Pedro Paulo graças ao empenho jornalístico.

As novidades vêm à luz em momento de ações expressivas dos movimentos de mulheres. Antes, a reação às reportagens e às declarações de Pedro Paulo talvez fossem menores. Hoje, não. Numerosas entidades e coletivos reivindicam a demissão do secretário, o que equivaleria ao atestado de óbito da candidatura.

A insistência de Eduardo Paes em impor Pedro Paulo decorre também da sua necessidade de ter um político de confiança absoluta, sócio da aspiração presidencial, à frente de um município importante como o Rio. O prefeito pode indicar outro correligionário fiel, mas não tanto quanto o original.

A campanha do ano que vem se encaminhava para ter Pedro Paulo como favorito, embalado pela aprovação do eleitorado a Paes. É difícil que o secretário sobreviva como candidato. Se sobreviver, é improvável que vença. A persistência com Pedro Paulo pode custar a Eduardo Paes a derrota no Rio e o enfraquecimento nacional.

O deputado Leonardo Picciani seria opção a Pedro Paulo, mas não integra a corrente de Paes no PMDB. O secretário estadual de Transportes, Carlos Roberto Osório, também é cotado, porém divide suas fidelidades entre vários próceres do partido. A batalha intestina do PMDB carioca e fluminense vai se agravar com a exposição crescente de Pedro Paulo _e das vaias contra ele.

Romário

Dois mistérios cercam a pré-candidatura de Romário a prefeito do Rio. Um é fiscal e bancário. O outro, eleitoral.

Há indícios de que, no episódio da eventual conta secreta do senador Romário na Suíça, o erro jornalístico não tenha sido a reportagem que a revelou, e sim a errata.

A gravação da já célebre conversa de Delcídio do Amaral deu a entender que Romário aceitaria apoiar Pedro Paulo a prefeito para evitar que se tornasse pública a existência de conta não declarada à Receita.

A Polícia Federal pode esclarecer. A esta hora, já deve ter perguntado ou agendado perguntar ao banqueiro André Esteves, preso como Delcídio, se ele tem alguma informação útil acerca da situação bancária de Romário.

Se o senador ex-boleiro nada tem a esconder, certamente sairá candidato, encorajado por pesquisas que lhe conferem imensa intenção de voto. Nada tem a perder, pois o mandato de senador não está em jogo.

Se desistir, confirmando a versão de Delcídio, estimulará suposições.

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Uma foto para a história
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Mário Magalhães

Por Jorge Araujo/Folhapress, a imagem que os historiadores do futuro não poderão ignorar

Por Jorge Araujo/Folhapress, a imagem que os historiadores do futuro não poderão ignorar

 

Há quem ama, quem odeia e quem não ama nem odeia o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Digam o que disserem cabeças e corações, dificilmente uma imagem contará tanto sobre o poder no Brasil de 2015 como a de autoria do repórter fotográfico Jorge Araujo.

Publicada hoje no alto da primeira página da ''Folha'', ela retrata, com o rosto de Lula, o impacto do noticiário desses dias.

A depender do que pensa e sente cada um, a interpretação diferirá.

Mas é inegável que o tempo de júbilo se perdeu pelo caminho.

Quando a meteorologia do poder e da política anunciava nuvens menos carregadas para Lula e seus correligionários, um deles, Delcídio do Amaral, precipitou chuvas e trovoadas.

Saiu a chuvica da Maju e sobrevieram furacões.

É coincidência curiosa que a foto seja de Jorge Araujo. Um dos mais talentosos fotógrafos brasileiros, ele acompanha a trajetória de Lula desde os tempos do sindicalismo. Tem _também_ no ex-presidente um grande admirador do seu trabalho.

Jorge eternizou a campanha da anistia com uma foto célebre, que lhe valeu o Prêmio Esso de 1979. Ei-la:

 

 

No futuro, quando quiserem saber como andava o ânimo de Lula nessa turbulenta quadra do século 21, a fotografia de Jorge Araujo valerá mais do que um montão de artigos e ensaios.

A controvérsia fica _e ficará_ na análise sobre o abatimento.

Ainda que Lula estivesse ontem, digamos, gripado, a imagem documenta seus dias bicudos.

De novo, Jorge Araujo fez uma foto para a história.

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Prisões: promiscuidade entre público e privado dilapida patrimônio público
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Mário Magalhães

blog - angeli corruptos

Por Angeli, na ''Folha'', 26.11.2015

 

A impunidade é combustível indispensável à expansão da corrupção, modalidade criminosa que exige quem dê e quem receba, o corruptor e o corrupto. Quando bandidos acabam na cadeia, emite-se um aviso: quem reeditar práticas semelhantes se arrisca a ter idêntico destino. Se prevalece a impunidade, o combustível da gatunagem ganha aditivo.

Faz bem ao Brasil que o senador petista Delcídio do Amaral tenha ido para o xilindró e que o banqueiro amigo de tantos partidos André Esteves lhe faça companhia. É saudável que o STF tenha respondido com altivez às provas e que, no caso do líder do governo no Senado, a maioria dos seus pares tenha autorizado a prisão, nos termos da lei.

Por mais óbvio que seja a muita gente, para outros passa despercebido quem é a maior vítima da corrupção. É o patrimônio público, bem coletivo dos cidadãos, mais caro ainda aos que dependem do Estado para sobreviver. Num exemplo: se há quem tenha dinheiro para pagar o colégio privado da gurizada, parcela expressiva dos brasileiros depende de estabelecimentos públicos de ensino; a corrupção retira do Estado condições de manter escolas e oferecer educação de qualidade _no contraste com o desempenho das particulares, amplia-se o desnível de oportunidades. (Sem falar que os ricos costumam preferir faculdades públicas, bancadas por todos, em especial os mais pobres.)

A promiscuidade entre o segmento público e o privado serve ao segundo. Não que não devam existir parcerias, pactos, vínculos que promovam vantagens lá e cá. O setor público melhorando a vida das pessoas. O privado auferindo lucro legítimo. Relações não promíscuas. O problema é quando o público é prejudicado, favorecendo o privado, rompendo o equilíbrio na balança de interesses. Pior ainda, quando o patrimônio público é dilapidado em proveito de companhias e bolsos particulares.

A Petrobras é exemplar. Sua constituição foi uma batalha cívica de décadas, vencida contra petrolíferas privadas nacionais e sobretudo estrangeiras. Sabotagem nunca faltou contra a Petrobras. Por um bom tempo, opuseram-se opiniões distintas sobre o monopólio estatal do petróleo, hoje erradicado.

A partir de determinada quadra, uniram-se para pilhar a Petrobras aqueles que alardeavam a privatização e os que discursavam em alto brados contra ela. Associaram-se para roubar. Na prática, para privatizar, transferindo ilegalmente patrimônio público para mãos de larápios.

Que independência tem um governante ou legislador cuja campanha é financiada por empreiteiras, estaleiros e bancos, como o BTG Pactual de Esteves? Assim como não existe almoço gratuito, ''doação de campanha'' é história da carochinha. As empresas não doam, elas investem. O que o administrador público e o legislador têm a oferecer em troca, a não ser abrir mão de interesses públicos, privilegiando os de conglomerados privados? Podem falar em ''contribuição'' em nome de valores da cidadania, de veleidades sociais, do pragmatismo de o país ir bem, para as empresas avançarem. Não creio. Basta observar a atuação dos beneficiários das ''doações'', a quem eles servem, por que causas batalham. Por que a Vale foi tão bem tratada depois da tragédia criminosa de Mariana?

A promiscuidade é a antessala do crime.

O senador do PT é o mesmo sujeito nomeado diretor da Petrobras no governo FHC. O banqueiro seu camarada destinou milhões de reais às campanhas de Dilma Rousseff e Aécio Neves em 2014. E um trocado ao caixa 1 de Delcídio _sem contar eventuais pixulecos por baixo do pano.

A verborragia radicalíssima no choque entre vultos da politicalha brasileira disfarça comportamentos parecidos.

Nada foi tão constrangedor ontem como assistir aos senadores, aos menos de PT, PSDB e PMDB se humilhando ao elogiar Delcídio do Amaral. O que temem? A convicção de que lugar de ladrão é na cadeia?

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Chanchada psicodélica, ‘Chatô’ eviscera o país da Dercy, não do Shakespeare
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Mário Magalhães

 

Em 14 de dezembro de 1968, um dia depois da decretação do AI-5, o jornalista Carlos Lacerda (1914-1977) foi preso no Rio. Ex-governador da Guanabara, ex-deputado federal, ex-vereador, havia ido em cana pela primeira vez em 1933. Nos 35 anos seguintes, o mundo dera muitas voltas, e Lacerda mais ainda. Ele começou uma greve de fome que o enfraqueceu, persistia na determinação de não comer, até que levou uma dura de um irmão sagaz: o grevista de fome estava querendo fazer Shakespeare no país da Dercy Gonçalves.

É a terra da atriz brasileira, e não do bardo inglês, que o agora cineasta Guilherme Fontes eviscera em ''Chatô: O rei do Brasil''. Não se trata de condição geográfica, mas existencial. O filme é baseado na biografia homônima escrita por Fernando Morais, obra-prima da literatura de não ficção, editada pela Companhia das Letras. Tinha tudo, supunha eu, para dar errado, tamanha a turbulência que afetou a produção. Resultou numa brilhante chanchada psicodélica, reconstituindo alegoricamente a vida do umbuzeirense Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Mello (1892-1968) com o tom e a batida do protagonista.

Ignoro se o diretor fez bom ou mau uso do dinheiro público, se é cabra decente ou indecente, honesto ou ladrão. Isso quem dirá é a Justiça, além de palpiteiros que se pronunciam de ouvir falar. Sei é que a saga de Guilherme Fontes em quase duas décadas para levar às telas seu filmaço, entre os melhores brasileiros do século 21, vale outro filme.

E o filme em cartaz vale prêmios de direção, fotografia, trilha sonora, roteiro, direção de arte, figurino, montagem e, não menos importante, interpretação (no mínimo para Marco Ricca, exuberante na pele do protagonista, e Andréa Beltrão, que vive a beldade disputada por Chateaubriand e Getulio Vargas).

Assisti a ''Chatô'' no sábado, cinema lotado na sessão das quatro da tarde aqui no Rio. Muita gente com pinta de ter lido o livro, se é que tal pinta existe. Mas na poltrona ao lado se sentou uma senhora que disse ter ido ver ''Chato'', sem acento. Culpa, em parte, do cartaz com circunflexo macambúzio.

Chatô, ou Doutor Assis, como era chamado, nada tinha de chato. Mandou e desmandou no Brasil. Até 1965, foi o mais influente empresário de comunicação, status que perdeu para Roberto Marinho. Por capricho, o magnata da mídia elegeu-se senador e cavou uma sinecura de embaixador em Londres. Em clima carnavalesco, o filme evoca as principais façanhas e perrengues de sua história. Pelo início, exibe o delírio de antropofagia canibal que abre a biografia de Fernando Morais. Mantém, até o fim, o espírito antropofágico cultural bem brasileiro.

''Chatô'' é uma chanchada porque é engraçado e burlesco quase sempre. A vida do personagem principal é contada num julgamento farsesco de programa anárquico tipo o do Chacrinha. Seu advogado é o falecido Getulio Vargas, com quem atravessou décadas trocando juras de amor (menos) e ódio (mais).

O dono dos Diários Associados deleitava-se em épater le bourgeois. Sequências cortejando o grotesco o acompanham espinafrando, humilhando e constrangendo a burguesia, clube ao qual se integrou, mas que não tinha em grande monta. O burguês Doutor Assis resolveu montar um museu de arte e, com esse intuito, empenhou-se na expropriação da burguesia. Era ele quem dizia, nesses termos combativos. Também esvaziou muitos cofres dos seus jornais, revistas, TVs, rádios, agências informativas, tudo para comprar quadros e esculturas. No que deu isso? No legado _palavrinha da moda…_ que pode ser visitado logo ali, na avenida Paulista. Sim, o Masp.

A chanchada é psicodélica porque o roteiro parece fragmentado em excesso, como se fosse consequência de uma gota de LSD ou de uns goles de chá de cogumelo. Mas o caos é aparente. A recusa à harmonia preguiçosa é pensada, com a arte mimetizando a figura que retrata. Assim como um filme sobre um homem marcado pela ação terá muita ação.

O país é da Dercy Gonçalves porque o exercício de poder, se soa caricatural no filme, risível como a grande humorista, era e muitas vezes ainda é assim mesmo. Ou alguém acha que José Sarney em campanha eleitoral no Amapá ostenta os modos de cavalheiro reconhecidos nos chás da Academia? O Brasil é uma grande bagunça, mas a bagunça é mais generosa com uns e egoísta com outros. Getulio presenteou o amigo-inimigo Chatô com uma lei para arrancar a filha da mãe. Quantas leis ainda não são presenteadas hoje?

A Chateaubriand atribui-se um sem-número de achaques _quem não anunciasse em suas empresas era avacalhado e desmoralizado, amargava prejuízos. E dado às vendetas mais baixas. Uma delas, das menos cruéis, até anedótica, mirou um advogado que morava em Copacabana. Trabalhara para Chatô, haviam rompido. O ''Diário da Noite'', vespertino carioca dos Associados, publicou que o advogado decidira viver num mosteiro e fizera voto de pobreza. Assim que o sol nascesse, distribuiria toda sua fortuna na porta de casa. Imagine o povaréu que apareceu em busca de uns caraminguás.

O fundador da TV Tupi encerrava controvérsias editoriais aconselhando: quem quiser expor opinião que tenha o seu próprio jornal. Pagava ordenados mixurucas, mas fazia questão que os enviados especiais dos Associados se hospedassem no hotéis europeus mais chiques. Quer aumento?, ingadava. Use seu chachá, emendava, sugerindo se aproveitar da posição de jornalista para tomar algum. Vulgar e inescrupuloso? Ok, mas sincero. Será que o Brasil mudou tanto, a despeito de palavras mais polidas?

''Chatô'' escancara o carisma e o talento do criador da Ordem do Jagunço, fanfarronice cujo propósito era tripudiar sobre endinheirados e poderosos. E também os seus espectros mais sombrios.

Estão lá os coadjuvantes da sua vida, ainda que com nomes trocados e identidades combinadas: Maria Henriqueta, Corita, Samuel, Carlos (sim, o Lacerda, que trabalhou nos Associados), Aimée, Dóris, Emília, Gregório, Armando, Teresa, o Brasil do século 20 passeando da década de 1930 à de 1960. Dá a impressão de alucinação, mas é, para o bem e o mal, o Brasil de verdade.

Um prazer nem tão frequente no cinema: em vez da preguiça, a provocação estética e intelectual. ''Chatô'' mostra as vísceras do Brasil, mas não é, ainda bem, simulacro de dissertação sociológica, e sim uma aventura divertida. Com CPF de cinema, e não a adaptação automática e cômoda de livro para filme.

Também está lá um farmacêutico que aplicava no traseiro de Chateaubriand uma injeção de estimulante que outrora produzia os efeitos dos tais comprimidos azulzinhos contemporâneos. Não foi licença criativa, que seria legítima, dos roteiristas. Aconteceu, documenta o livro de Fernando Morais.  Aos 22, 23 anos, destacado pelo magistral biógrafo para a missão, quem entrevistou o farmacêutico fui eu, nos arredores da praça Mauá.

A vida de Assis Chateaubriand rendeu uma biografia maior.

E a biografia maior virou um filme admirável.

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‘Nós vamos estar sem’, a nova forma de dizer ‘não tem’
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Mário Magalhães

A maldição do gerúndio doido é manjada: ''vamos estar providenciando'', ''vamos estar avaliando'', ''estaremos entregando'', ''estaremos transferindo'' e coisa e tal.

Tem coisa pior.

Ontem um sujeito famélico, prato fundo com nhoque e molho de tomate nas mãos, pediu queijo ralado.

''Hoje nós vamos estar sem'', respondeu a atendente da rede de ''comida italiana''.

Ou seja, ela quis dizer ''não tem''.

Foi no aeroporto de Brasília.

É como apelar por um pouco de civilidade a gente de alma sombria e ouvir: ''Hoje nós vamos estar sem''.

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Lição dos opositores argentinos: presidente sai das urnas, não do tapetão
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Mário Magalhães

O chefe de governo de Buenos Aires, Mauricio Macri, prepara-se para votar na capital argentina em junho

Mauricio Macri, antes de votar, em junho – Foto Daniel Jayo/Associated Press

 

Há um aspecto que não merece ser menosprezado na eleição do opositor Mauricio Macri para presidente da Argentina: em vez de empenhar-se em chicanas e puxadas de tapete, a oposição apostou nas urnas para derrotar Cristina Kirchner _no caso, o candidato apoiado pela presidente, Daniel Scioli.

A oposição reconheceu a soberania do sufrágio popular que consagrara Cristina. Presidente se elege no voto, e não no tapetão.

Para regressar ao poder, cabe ao peronismo e ao kirchnerismo se preparar para o próximo pleito.

Se o triunfo de Macri é festejado em setores na vizinhança, o feito de certa forma deveria provocar constrangimento, ao reverenciar as urnas, desprezando tenebrosas transações.

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