Blog do Mario Magalhaes

Ditadura chilena matou e sumiu com cinco brasileiros
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Mário Magalhães

Jane Vanini desapareceu no Chile em 1974

 

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A moça bonita da foto acima nunca teve direito a um enterro digno. A mato-grossense Jane Vanini tinha 29 anos quando agentes da ditadura Pinochet a prenderam em 1974, na cidade de Concepción. Estava ferida. Jamais reapareceu.

Guerrilheira no Brasil e no Chile, Jane tiroteara por tanto tempo com os repressores que eles supuseram enfrentar um grupo numeroso de militantes. Ela deixou um bilhete para seu companheiro, que havia sido detido horas antes: “Perdoa-me, meu amor, foi uma última tentativa para te salvar”. Sob custódia do Estado, ele _o jornalista chileno José Carrasco Tapia_ seria assassinado em 1986.

Jane foi um dos cinco brasileiros mortos e sumidos na ditadura do Chile. Não regressaram para casa os exilados Luiz Carlos Almeida, Nelson de Souza Kohl, Túlio Roberto Cardoso Quintiliano e Wânio José de Matos.

Para que seus pais não sofressem ainda mais, as irmãs de Jane Vanini lhes contaram que ela morrera do coração.


Números contradizem a lenda: sob Pinochet, chilenos ficaram mais pobres
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Mário Magalhães

Pobreza, outra herança da ditadura Pinochet – Foto reprodução

 

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Sim, isso mesmo, a  vida da maioria dos chilenos não melhorou na ditadura. Como o professor Vladimir Safatle escreveu em sua coluna de ontem na “Folha”. Ei-la:

*

Chile, 40 anos depois

Amanhã fará 40 anos que o Chile passou por um dos mais brutais golpes de Estado da história recente. País historicamente avesso a intervenções militares, o Chile era, até 11 de setembro de 1973, um dos mais inovadores laboratórios de transformação social do Ocidente.

Salvador Allende liderou um governo que procurava, ao mesmo tempo, superar índices vergonhosos de desigualdade econômica, enquanto aprofundava mecanismos de democracia direta e de respeito às estruturas da democracia parlamentar. Seu caminho era uma via inovadora entre as sociedades burocráticas do Leste Europeu e as dos países capitalistas.

Na verdade, tal caminho encarnava o medo mais profundo de países como os EUA em plena Guerra Fria. Tratava-se do medo de uma experiência capaz de aproximar práticas socialistas de redistribuição de riquezas com uma democracia pluripartidária.

Por isso, Salvador Allende foi vítima de um conjunto de ações de sabotagem econômica e de criação de clima de instabilidade política que mereceriam levar Henry Kissinger, então secretário de Estado norte-americano e hoje saudado como grande diplomata, ao banco dos réus do Tribunal Penal Internacional. Tais ações encontram-se fartamente registradas em documentos norte-americanos que passaram, nos últimos anos, ao domínio público.

Mesmo sendo vítima dessa política covarde, os votos aos partidos da base de Allende cresceram nas eleições legislativas de 1973, o que redundou em aumento da participação parlamentar. Estava claro que a única saída para derrubá-lo seria o golpe.

Alguns gostam de relativizar o período Pinochet, apelando para a falácia de que, apesar da ditadura, foi um momento de crescimento econômico e riqueza. Eles procuram esconder que, entre 1950 e 1971, o PIB chileno cresceu, em média, 2% ao ano. Já entre 1972 e 1983, ele recuou (sim, recuou) 1,1%. Foi apenas nos últimos cinco anos, com o comando econômico de Hernán Büchi, que o governo Pinochet conseguiu recuperar-se parcialmente desse abismo.

Mesmo assim, em 1970, a relação entre o PIB por habitante do Chile e o dos EUA era de 35,1%. Em 1992, esse mesmo índice era de 33,6%. O mínimo que se pode dizer é que os liberais latino-americanos têm uma concepção bastante peculiar do que devemos entender por ''sucesso''.

Hoje, com os chilenos voltando a descobrir a força das ruas, que redundou em manifestações populares massivas por serviços públicos de qualidade, e prestes a despachar o impopular único governo direitista de sua história recente, pode-se dizer que a experiência de Allende não foi em vão.


No sinistro Estádio Nacional, em Santiago, o zagueiro do Cobreloa sangra dois rubro-negros; em Montevidéu, Anselmo se vinga com um soco, e o Flamengo conquista a Libertadores
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Mário Magalhães

Em 1981, Anselmo vinga em Montevidéu a pancadaria de Santiago – Fotos do grande Almir Veiga

 

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Nunca estive no Chile da ditadura, mas a minha memória afetiva tem respingos de lá. Em 1981, o Flamengo conquistou a Libertadores, numa série de três partidas decisivas contra o Cobreloa. A segunda foi marcada por agressões, no mesmo estádio onde as forças do general Augusto Pinochet haviam enclausurado, torturado e matado, oito anos antes. Um quarto de século mais tarde, reconstituí aquelas batalhas épicas.

*

Herói esquecido não se arrepende de ‘soco vingador’

Foi uma frase só: ''Entra lá e dá uma porrada no cara!''.

É assim, palavra por palavra, que o funcionário público -de Portugal- José Antônio Cardoso Anselmo Pereira, 47, ainda se lembra da ordem que ouviu do técnico Paulo César Carpegiani 25 anos atrás.

Anselmo comprovou a identidade mostrando o passaporte brasileiro ao bandeirinha e entrou no gramado do estádio Centenário, em Montevidéu. Não se preocupou com a bola, mas com o zagueiro Mario Soto. Faltavam dois ou três minutos para o fim do jogo.

Não se esqueceria daquela noite: ''Olhei para o lado, e ele achou que eu ia fazer alguma coisa, porque saiu de perto de mim. Aí teve uma falta, uma bola parada. Quando tocaram a bola rápido, ele estava atrás de mim e passou correndo. Quando passou correndo, senti que ia passar ao meu lado. Virei para trás e dei uma porrada nele''.

Acertou a cabeça de Soto, que desabou. No próximo dia 23, o seu soco completa um quarto de século, e o Flamengo celebra o título da Taça Libertadores.

O timaço de Zico, Leandro, Júnior, Mozer, Tita, Andrade, Raul, Adílio, Nunes e companhia entrou para a história -conquistou o Mundial interclubes três semanas depois. Seus craques também.

Na semana seguinte ao triunfo sobre o Cobreloa, porém, talvez não houvesse para a torcida um herói como Anselmo. Esquecido e feliz longe do Brasil, hoje o antigo centroavante não se arrepende de uma das mais célebres agressões do futebol.

O nocaute que levou à idolatria instantânea feriu a carreira que despontava: Anselmo ficou marcado pela atitude, despediu-se do Flamengo meio ano depois e nunca mais defendeu um clube protagonista.

Não era para se arrepender? ''Não. Isso, não! Não é para dizer para alguém fazer, não é exemplo para nada, não tem nada a ver com futebol. Numa época foi até bom, numa época pequenininha. É quando se chega a herói, mas logo se é tratado como maluco, bandido, marginal. Se calhar me prejudicou muito. Mas foi feito.''

Missão

Seu gesto se juntou à antologia nacional que coleciona a cotovelada de Pelé no uruguaio Matosas na Copa de 70, a de Leonardo no americano Tab Ramos na de 94 e a ira de Almir Pernambuquinho, que enfrentou no braço todo o time do Bangu na decisão do Campeonato Carioca que o Flamengo perdeu em 1966.

A diferença é que Anselmo não bateu no calor da partida, não entrou para fazer um gol: seu desafio era derrubar o chileno chamado de ''O Verdugo'' pelos próprios companheiros.

Nos atuais tempos de Jogo Limpo, a campanha mundial contra a violência, talvez Anselmo fosse execrado. O Cobreloa pediu seu banimento de competições internacionais, mas não houve nenhuma punição.

O fervor da torcida se expressou em uma faixa exibida em meio à multidão que aclamou os campeões no Galeão: ''Anselmo vingador''. O colunista João Saldanha exaltou no ''Jornal do Brasil'': ''Eles acabaram levando o que Mario Soto levou, merecidamente, do Anselmo, que entrou em campo, foi lá, deu-lhe aquela cacetada e cumpriu a missão dele''.

Do Flamengo, Anselmo jamais recebeu homenagem.

Guerra

A guerra concluída no Centenário teve os movimentos iniciais na primeira das duas partidas das finais, no Maracanã. O Flamengo ganhou por 2 a 1, dois gols de Zico.

A segunda foi disputada em Santiago, no estádio Nacional, que oito anos antes servira de campo de concentração no golpe de Estado no Chile.

O Cobreloa fez 1 a 0 com méritos, mas produziu uma carnificina. O cotovelo de Mario Soto quase cegou o atacante Lico, cujo olho esquerdo desapareceu sob o hematoma, e abriu o supercílio de Adílio.

Atletas rubro-negros contaram que o rival golpeava com uma pedra na mão. Com a igualdade, foi preciso um terceiro jogo, em campo neutro.

Anselmo assistiu à batalha de Santiago pela TV, em casa, em Friburgo (RJ). No dia seguinte foi chamado para se incorporar às pressas à delegação, já que Lico não jogaria.

Senhor da bola, o Flamengo se impôs, Zico marcou dois, e a pancadaria prosseguiu. No finalzinho, título decidido, Soto acertou Tita com gosto.

O banco do Flamengo se levantou, revoltado, e Carpegiani mandou Anselmo entrar no lugar de Nunes e revidar. O soco, desferido de frente, fez o zagueiro girar 180 graus antes de cair. O time inteiro do Cobreloa correu para pegar o agressor.

Ele fugiu, escorregou, mas escapou. Foi expulso e levou dois rivais, inclusive Soto.

Jacaré

A vingança transformou o jogador de 22 anos em ídolo. Reserva, ele foi a Tóquio, mas não participou dos 3 a 0 sobre o Liverpool no Mundial.
Em 1982, se transferiu para o Botafogo-SP, cinco anos após chegar ao infanto-juvenil do Flamengo. Esteve em outras seis equipes antes de parar, em 1990, e se mudar para Portugal, onde já atuara.

Vive na localidade de Quarteira, a poucos metros do mar. Pacato, de cabelos grisalhos, acompanha a carreira de dois filhos jogadores de futebol.

Pega jacaré na praia, mergulha, pesca pargos e robalos, diverte-se em peladas. Cidadão de classe média, trabalha na contabilidade de uma escola. Torcia pelo Fluminense na infância. Trocou: ''Quem passa pelo Flamengo fica com o coração rubro-negro''.

Não recomenda que o imitem. Não guarda ressentimento, nem se considera injustiçado. E não disfarça o orgulho pelo épico da Libertadores e até mesmo pelo soco, catártico para a maior torcida do Brasil: ''As pessoas que viveram aquilo nunca vão esquecer''.

 

Carpegiani reconhece ter dado ordem

Como o sr. se lembra da conquista da Libertadores e do episódio com Anselmo? 

O fato com o Anselmo é pequeno, diante da conquista. A responsabilidade foi minha. Pedi para ele entrar e dar o soco. Sou grato, porque o jogador me atendeu. Depois a direção não queria levá-lo ao Mundial. Bati o pé para ele ir.

O sr. sempre assumiu a ordem.

Pediram para eu dizer que não ordenara. Mas a responsabilidade foi toda minha. Fato negativo, mas ocorreu, em função da partida anterior.

Aos 57 anos o sr. mandaria um atleta fazer o que mandou aos 32?

Não. Aquilo foi num momento quente. Não tenho arrependimento, só que não faria de novo. E repudio quem fizer.

 

O agressor foi a vítima, diz agredido

Em novembro de 1981, Mario Soto tinha 31 anos e era o ''xerife'' do Cobreloa. A voz afável nada tem a ver com o lugar-comum associado a um vilão. Ele diz que o soco de Anselmo não o atingiu no estádio Centenário, ao contrário do que dizem testemunhas diversas.

O Flamengo reclamou da sua violência já no segundo jogo, em Santiago. 

É como se jogava a Libertadores naquele tempo. O Cobreloa jogou como deveria.

O que o sr. lembra da agressão de Anselmo?

No campo pode ocorrer tudo. O ruim é que foi agressão programada. Pelo que sei, no hotel.

Carpegiani assume a ordem, mas no fim do jogo.

Tiro toda a responsabilidade do jogador. Anselmo foi vítima da decisão de Carpegiani.

Como foi?

Eu estava na metade do campo, e o nosso goleiro gritou ''cuidado!''. Anselmo não chegou a me acertar. A única ação antidesportiva foi a de Carpegiani. A mim não causou dano. Causou ao Anselmo.

(Mário Magalhães, “Folha de S. Paulo”, 29/10/2006)


‘Uma voz pela liberdade ecoa no estádio da morte’: Juca Kfouri evoca João Saldanha
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Mário Magalhães

João Saldanha, o comentarista que o Brasil consagrou – Foto reprodução

 

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Por Juca Kfouri

*

O avião veio do Rio, parou em São Paulo e seguiu para Santiago. Estava bem vazio. A seleção brasileira ia jogar um amistoso contra a chilena, como preparativo para as eliminatórias da Copa de 86. Era maio de 1985, e o Chile ainda vivia sob a feroz ditadura do general Augusto Pinochet.

O jogo seria no estádio Nacional, recentemente reaberto depois de ter servido durante anos como cárcere, palco de tortura e de fuzilamento de presos políticos. No avião, vindo do Rio, encontro João Saldanha, o único. Sento-me ao seu lado, e engatilhamos mil conversas.

João era para ser ouvido. E eu não me cansava de ouvi-lo. Eis que, quando estávamos para pousar, ele bota a mão no meu braço e me diz, paternal, como às vezes gostava de fazer: “Olha aqui. Eu te conheço, e você me conhece. Você sabe que não sou de ter medo de nada, mas vou te avisar: a ditadura aqui não é mole. Eles somem com as pessoas, sejam elas quem forem, venham de onde vierem. Não vá bancar o herói e falar mal desses caras na tv porque eles vão estar ouvindo”.

Achei graça e o tranquilizei. Na noite anterior, ao ir me despedir de meu pai, ouvi dele coisa parecida: “Cuidado lá, filho. Não vá se meter a balão”. Eu já tinha três filhos, 35 anos, não era nenhuma criança e tinha razoável experiência política, ex-militante da ALN (grupo de resistência armada à ditadura brasileira) e do Partido Comunista Brasileiro, eterno partido do nosso João Saldanha.

Chegamos ao estádio, o narrador do sbt, Osmar de Oliveira, abre a jornada e me chama para os “primeiros comentários”. Sem me dar conta, tamanha a emoção de estar naquele lugar sinistro num momento em que, no Brasil, já vivíamos a reconstrução democrática, engato uma primeira e vou: “O estádio Nacional de Santiago desperta duas sensações antagônicas. Foi aqui que, em 1962, a seleção brasileira liderada por Mané Garrincha ganhou o bicampeonato mundial”. E engato uma segunda: “Mas foi aqui também que, em 1973, a ditadura chilena assassinou e prendeu milhares de patriotas que se insurgiram contra o golpe militar que derrubou o presidente socialista, democraticamente eleito, Salvador Allende”.

Osmar de Oliveira, para quem Saldanha havia recomendado “Segura esse cara”, me olha com olhar de espanto. E engato a terceira: “Aqui morreram patriotas como o compositor Victor Jara, que, antes de ser fuzilado, teve os dedos das mãos quebrados pelos militares chilenos para não poder tocar para os prisioneiros”. Por fim, a quarta: “Aqui morreram e estiveram presos muitos exilados brasileiros também”. E devolvo a palavra para Osmar.

Nem bem passados dois minutos, ele me cutuca. Na porta de nossa cabine, um cidadão de terno e cara de poucos amigos estaciona com ares de quem vai ficar. E fica até o fim do jogo. E nos acompanha ao jantar, ao hotel e ao aeroporto, às seis da matina do dia seguinte. João Saldanha não falava nada, só me fuzilava com o olhar, mas sem arredar pé de perto de mim o tempo todo.

Ao chegar em São Paulo, quando fui me despedir, ele abriu um sorriso e disse marotamente: “Parabéns. Você é o meu orgulho”.

(Extraído do livro “Meninos, eu vi”, de Juca Kfouri, editoras DBA/Lance!)

(Crônica pescada aqui, no Blog do Juca Kfouri)


Na várzea, a tragédia do Chile
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Mário Magalhães

Cena do filme ''Machuca'', de Andrés Wood

 

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As ruas de Santiago fervilham na reta final do governo da Unidade Popular, antes do golpe comandado pelo general Pinochet e patrocinado pelos EUA em setembro de 1973. ''Allende, Allende, o Chile não se vende'', gritam nas passeatas da oposição. ''Allende, Allende, o povo te defende'', retrucam os partidários da coalizão liderada pelo socialista Salvador Allende.

A tensão não é menor em uma escola de elite. Um padre gringo, desses humanistas das antigas, inventou de abrir vagas gratuitas para pobres.
No colégio religioso, exclusivo para meninos das melhores famílias, o filho da madame passou a estudar ao lado do filho da lavadeira. Um dos alunos bem nascidos se chama Andrés Wood. No futuro, terá duas paixões: cinema e futebol.

Das memórias de criança, Wood fez ''Machuca'', em cartaz no Brasil. O filme começa com Gonzalo Infante vestindo o uniforme de almofadinha, com gravata e blazer. Naquele dia, o padre Mc Enroe apresenta os colegas molambentos. Um deles, Pedro Machuca, está com seu único pulôver, furado, um furo que mesmo cerzido acaba sempre por se impor.

“Machuca” conta a história de dois amigos que se despedem da infância e a amizade entre quem mora numa casa bacaninha e num barraco sem esgoto. Mostra o que o Chile poderia ter sido e não foi.

A palavra ''fútbol'', que eu tenha notado, não é pronunciada. Mas o futebol pontua o estado da alma. Na primeira vez que o sardento Gonzalito dá carona de bicicleta para o descendente de índios Machuca, eles atravessam um campo de areia, na entrada da favela. Numa das traves, garotos jogam uma pelada. O travessão de madeira, cansado, faz barriga para baixo.

Quando o golpe irrompe, Gonzalo vai à favela saber da sorte do seu chapa. No campo, veem-se apenas os restos de uma fogueira que já ardeu. Perto dos barracos, o menino assiste à tropa matando, leva um empurrão de um soldado e cai fora com lágrimas a cobrirem-lhe o rosto.

Tempos depois, ele pedala de volta. Desapareceu a favela que ficava além do campinho e aquém da cordilheira. Ninguém bate bola, ninguém mora mais ali. O Chile se transformou numa imensa cancha de futebol vazia.

Naquela época, o Chile me dizia duas coisas: fora lá que Garrincha ganhara a Copa de 62. E de lá viera o melhor zagueiro que eu conheceria, o Figueroa. Mais velho, descobri que foi onde fizeram, do maior estádio, um campo de concentração, tortura e morte.

Andrés Wood dirigiu o filme ''Histórias de Futebol''. Não vi, mas não me surpreenderei se nele o futebol não disser tanto como em ''Machuca''. Numa das últimas sequências, o padre Mc Enroe, corrido do colégio e substituído por um militar, come todas as hóstias, para não deixar nenhuma. ''Este já não é um lugar sagrado'', lamenta. Como o campo de várzea, na tela, e o estádio Nacional, na tragédia chilena.

(Mário Magalhães, “Folha de S. Paulo”, 21/01/2005)


Ficha do Chile mostra parceria com ditadura brasileira
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Mário Magalhães

Zuleika Alambert – Foto Assembleia Legislativa de São Paulo

 

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Uma troca de informações entre autoridades de segurança do Brasil e do Chile em 1977 mostra como funcionava, no ''varejo'', a colaboração de regimes militares da América do Sul na repressão a militantes de esquerda.

Depois de receber um informe dando conta de que uma exilada brasileira (Zuleika Alambert) havia sido identificada no Chile com um codinome (''Léa Gomes Benevides''), os brasileiros pediram ajuda aos colegas andinos para saber se os dois nomes se referiam à mesma pessoa.

Os chilenos mandaram uma ficha com as impressões digitais da militante, o que provavelmente permitiu ao Exército brasileiro confirmar a identidade -''Léa'' era de fato Zuleika.

O pedido de busca confidencial 794-77-A, emitido em 1º de agosto de 1977 pelo 1º Exército, no Rio, a pedido do CIE (Centro de Informações do Exército), pedia a comparação da ficha datiloscópica recolhida no Chile com alguma registrada no Brasil.

O DGIE (Departamento Geral de Investigações Especiais), a polícia política da ditadura no Rio à época, recebeu a solicitação dos militares -e respondeu não ter encontrado ficha de Zuleika.

O documento do 1º Exército foi achado pela “Folha” no Arquivo Público do Estado.

O golpe que levou o general Augusto Pinochet ao poder no Chile estava prestes a completar quatro anos e Zuleika Alembert já havia fugido.

Militante comunista, deputada estadual em São Paulo em 1947 pelo PCB, ela tinha chegado ao Chile no começo da década de 70. O país era então governado pelo socialista Salvador Allende. Centenas de exilados brasileiros moravam lá.

Ao se registrar, em 30 de dezembro de 1971, Zuleika usou um passaporte falso. Foi quando imprimiu as digitais. No dia do golpe, 11 de setembro de 1973, asilou-se na embaixada da Venezuela.

O modo de operação dos órgãos de informação dos dois países, num caso específico, como o da comunista brasileira, era a aplicação do convênio que reunia no ''atacado'' seis governos militares sul-americanos.

Em 1975, foi criada a Operação Condor, com a participação de Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai, Chile e Bolívia. Mesmo antes desse protocolo havia ação conjunta contra militantes de esquerda.

A Operação Condor voltou a ser discutida agora no Brasil após um juiz argentino pedir esclarecimentos sobre o sequestro de três militantes do seu país no Rio em 1980. Os três nunca apareceram.

No Chile, os brasileiros sofriam severa vigilância. Um mês depois da derrubada do governo Allende, a agência do SNI (Serviço Nacional de Informações) no Rio distribuiu um informe detalhado sobre os brasileiros que haviam se asilado na embaixada da Argentina em Santiago.

Entre eles, estavam o hoje deputado federal Fernando Gabeira (PV-RJ), o deputado estadual fluminense Carlos Minc (PT) e o guerrilheiro José Lavechia.

O guerrilheiro iria desaparecer em 1974, ao tentar voltar para o Brasil na fronteira com o Paraguai. Documentos mostram que os militares brasileiros esperavam Lavechia e cinco companheiros, que também sumiram.

O caso de Zuleika Alembert terminou bem para ela -cinco brasileiros desapareceram no Chile, sete na Argentina e um na Bolívia-, graças à fuga de 1973.

''Já na véspera eu achava que iria haver o golpe'', disse à “Folha” Zuleika, hoje com 77 anos. ''Falei para o Ferreira Gullar (poeta, também ligado ao PCB): ‘Vou preparar tudo para cair fora. Eles vão bater aqui’. Larguei tudo dentro de casa''.

Ela se salvou na embaixada, fez um tratamento de rins na hoje extinta União Soviética e passou o resto do exílio em Paris.

Voltou para o Brasil em 1979. Atualmente, longe da militância partidária, diz só se interessar pelo movimento de mulheres.

(Mário Magalhães, “Folha de S. Paulo”, 05/06/2000; Zuleika Alambert nasceu em 1922 e morreu em 2012) 


‘A vida é eterna em cinco minutos’, cantou Victor Jara. Mataram-no com 44 tiros
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Mário Magalhães

 

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Faltavam poucos dias para Victor Jara, a voz que encarnou os anos Allende, completar 41 anos, quando ele foi trucidado pela ordem parida no 11 de setembro de 1973. Mataram-no com 44 tiros _isso mesmo, quatro dezenas mais quatro unidades.

Clássico do cancioneiro chileno, um dos maiores sucessos do compositor se chama “Te recuerdo Amanda”. Um dos versos diz que “a vida é eterna em cinco minutos” (ouve-se a canção clicando na imagem acima). Conta a história de amor de dois operários, a moça do título e Manuel. Eram os nomes dos seus pais.

Até hoje seus assassinos não foram punidos. Como a história não terminou, um veterano militar que vive nos Estados Unidos tem o que temer, como escreveu Dorrit Harazim em artigo, para (não) variar, soberbo no domingo (a íntegra pode ser lida aqui). Termina assim:

“A última visão que Navia e seus companheiros tiveram de Jara foi do seu espancamento a golpes de fuzil na saleta do estádio. No final da mesma tarde, cruzaram o saguão principal para serem transferidos para o Estádio Nacional. Ali se depararam com cerca de 50 cadáveres espalhados pelo chão. Entre eles, o de Victor Jara.”

“Foi somente em 2009 que a investigação conduzida pelo juiz Miguel Vásquez conseguiu chegar ao nome do homem que teria apertado o gatilho do primeiro tiro contra a nuca do prisioneiro. Depois, o oficial teria ordenado aos soldados presentes que prosseguissem com a fuzilaria. Embora Pedro Barrientos negue jamais ter sequer cruzado com o músico, a família Jara espera que o Supremo Tribunal chileno encaminhe o aguardado pedido de extradição aos Estados Unidos.”

“Se Barrientos algum dia retornar, talvez se pergunte para que serviu tanta brutalidade. O Estádio Chile foi rebatizado de Estádio Victor Jara. As fitas máster das gravações do músico que a ditadura se empenhou em destruir foram laboriosamente substituídas por outras versões. Brotaram remixagens, remasterizações, foi lançada uma caixa com 9 CDs, republicada uma antologia com seus poemas. Bandas jovens o interpretam como um dos seus, companheiros velhos o cantam como no passado. Hoje, Victor Jara teria 81 anos.”


Bloqueado pela censura, o ‘JB’ saiu sem manchete sobre o golpe no Chile
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Mário Magalhães

''Jornal do Brasil'', 12 de setembro de 1973

 

A primeira página do “Jornal do Brasil” de 12 de setembro de 1973 é um dos momentos mais criativos e altivos do jornalismo nacional. Qualquer faculdade que se preza transmite lições com base naquela edição.

Desde 1964 o Brasil vivia a sua ditadura. Censores oficiais davam plantão em muitas redações, decidindo que assuntos poderiam ser noticiados, e como.

Então editor-chefe do “JB”, Alberto Dines contou ao “Jornal da ABI”, em 2012, como tudo se passara:

“Uma das causas da minha saída do JB, em 1973, foi porque eu forcei isso. Quando houve o golpe militar no Chile, veio a ordem da censura para não dar manchete sobre a derrubada do Salvador Allende. Mas a ordem chegou tarde da noite e o Allende estava na manchete! A essa altura, eu já não fechava o jornal. Nós decidíamos a primeira página e eu ia para casa. Já me dava esse direito. O Lemos também já tinha saído e quem ligou foi o Maneco Bezerra [da Silva], excelente jornalista que trabalhava na oficina. Ele alertou da ordem e fui imediatamente para lá. Morava em Ipanema, pegava o Aterro [do Flamengo] e era fácil chegar ao prédio novo do JB naquela hora, quase 11 horas. Quando cheguei um dos superintendentes do jornal já estava lá, mas ele não se meteu. E aí eu falei: ‘Vamos obedecer. Não vamos dar na manchete. Vamos fazer um jornal sem manchete! Vamos contar a história com o maior corpo possível da Ludlow…’ esse era corpo 24, se não me engano… Contamos a história toda e ficou, digamos, um pôster sem manchete. O superintendente do jornal me perguntou: ‘Dines, você tem certeza mesmo que quer fazer isso?’. E eu respondi que nós estávamos obedecendo às autoridades. No dia seguinte o Armando Nogueira, que estava na TV Globo, me telefonou logo cedo: ‘Porra! Isto é uma revolução!’. A direção não criticou nem elogiou. Quem elogiou foram os bons jornalistas. A capa está reproduzida em um livro que organizei, Cem Páginas Que Fizeram História, com a reprodução de outras páginas importantes de vários jornais. Mas a verdade é que três meses depois eu fui demitido por ‘indisciplina’.”

No site do “Observatório da Imprensa”, o colega Mauro Malin contou a história daquela primeira página.  Seu texto, “A mais antológica das capas”, pode ser lido aqui. Foi nele que eu pesquei o parágrafo acima.

Se o “JB” saísse com um título insípido, o efeito seria muito menor do que o de um jornal sem manchete. É possível que mesmo a manchete mais incendiária não tivesse temperatura tão alta quanto a o diário sem cabeça, constrangido pela censura.

Sempre tive curiosidade de saber, afinal, qual seria a manchete, se o representante da ditadura não tivesse encrencado. Mandei um e-mail para o Dines, decano do jornalismo brasileiro, camisa 10 do “Observatório”, e perguntei.

Havia duas opções. Eis a resposta:

“A manchete mais objetiva seria: ‘Golpe derruba e mata Allende’. Se tivesse duas linhas poderia ser: ‘Golpe militar derruba e mata Salvador Allende’.”

“Quarenta anos depois, a manchete mais completa é: ‘Allende morto, nós censurados’.”

“Georges Clemenceau, que fez a manchete mais curta e mais célebre da história do jornalismo ( ‘J’Accuse…’), poderia nos socorrer com algo mais retórico e francês.”

Nós, jornalistas, que sofremos com nossas barbeiragens, reveses e frustrações, também temos grandes histórias para contar.

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Sob bombardeio, Allende se despede dos chilenos, em um dos discursos mais dramáticos do século XX
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Mário Magalhães

 

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Com o Palácio de la Moneda bombardeado por caças e tanques, Salvador Allende pronunciou sua derradeira mensagem aos chilenos, pelo último meio que lhe restava, a Radio Magallanes _antenas de outras emissoras já haviam sido destruídas.

Foi como se Getulio Vargas, em vez de deixar uma carta testamento em 1954, a tivesse lido ao vivo, com o Palácio do Catete sob o ataque dos militares golpistas.

Antes do sacrifício, Allende começou, 40 anos atrás: “Compatriotas, esta será seguramente a última oportunidade em que eu poderei me dirigir a vocês”.

Referiu-se aos generais que o enganaram: “Minhas palavras não têm amargura, e sim decepção”.

Resistiu: “Diante desses fatos, só me cabe dizer aos trabalhadores: eu não vou renunciar. Colocado em uma encruzilhada histórica, pagarei com minha vida a lealdade do povo”.

“A história é nossa e a fazem os povos”, declarou.

Manifestou gratidão a quem o levara ao governo: “Trabalhadores da minha pátria, quero lhes agradecer a lealdade que sempre tiveram, a confiança que depositaram em um homem que só foi intérprete de grandes anseios de justiça, que empenhou sua palavra de que respeitaria a Constituição e a lei, e assim o fez”.

Nomeou os pais do golpe: “O capital estrangeiro, o imperialismo, unido à reação, criou o clima para que as Forças Armadas rompessem com sua tradição…”.

Sua voz não fraquejou: “Sempre estarei junto a vocês. Pelo menos, minha lembrança será a de um homem digno que foi leal à lealdade dos trabalhadores”.

Concluiu: “Trabalhadores da minha pátria: tenho fé no Chile e no seu destino. Outros homens superarão este momento sombrio e amargo, onde a traição pretende se impor. Saibam vocês que, muito mais cedo do que tarde, de novo se abrirão as grandes alamedas por onde passará o homem livre para construir uma sociedade melhor. Viva o Chile! Viva o povo! Vivam os trabalhadores! Estas são as minhas últimas palavras. Tenho certeza de que o meu sacrifício não será em vão. Tenho a certeza de que, pelo menos, haverá uma lição moral que castigará a felonia, a covardia e a traição”.

Para ouvir a íntegra, com imagens daquele dia dramático, basta clicar na imagem acima.

No ano retrasado, estive no Museu da Memória, em Santiago, onde  o discurso de Allende pode ser ouvido. Uma visitante chorava.


Militares tomam poder e anunciam ‘missão de lutar pela libertação da pátria do jugo marxista’
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Mário Magalhães

 

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Um minuto, oito segundos e cinco décimos.

Foi o tempo que os comandantes das Forças Armadas e dos Carabineiros (polícia ostensiva) precisaram para ler o comunicado de 11 de setembro de 1973 que anunciou a deposição de Salvador Allende (ouça clicando na imagem acima).

No primeiro item, afirmaram que “o senhor presidente da República deve proceder a imediata entrega do seu alto cargo às Forças Armadas e aos Carabineiros do Chile”.

No segundo, declararam que estavam unidos para iniciar “a histórica e responsável missão de lutar pela libertação da pátria do jugo marxista”.

A ditadura durou 16 anos e meio.