‘Por que deveríamos nos reconhecer nas cenas de 12 anos de escravidão?’
Mário Magalhães

O ator Chiwetel Ejiofor, em ''12 anos de escravidão'' – Foto divulgação
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E o Oscar de melhor filme foi para ''12 anos de escravidão'' ou, na tradução mais fiel ao título original, ''12 anos escravo'', ''12 anos um escravo'' ou ''12 anos como escravo''. Escravo, não escravidão.
No mesmo dia da consagração do filme de Steve McQueen estrelado por Chiwetel Ejiofor, a ''Folha'' publicou um interessantíssimo artigo da antropóloga Lilia Moritz Schwarcz e da historiadora Maria Helena P. T. Machado. As professoras titulares da USP comparam aspectos do regime escravocrata e da vida de negros livres e escravos libertos nos Estados Unidos e no Brasil.
Eis o artigo:
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Lilia Moritz Schwarcz
Maria Helena P. T. Machado
Por que deveríamos nos reconhecer nas cenas de '12 anos de escravidão'
Há situações que parecem estar além de qualquer racionalização: diante delas quem sabe a única resposta seja a profunda indignação. Esse é o caso do sistema escravista recriado em bases mercantis a partir do século 16, que instituiu um modelo de trabalho pautado na naturalização da violência, na compra e no tráfico de viventes. Difícil descrever por meio de interpretações objetivas um cotidiano que invadia a todos e se esmerava na aplicação de uma cartografia de castigos, vexações e punições.
''12 Anos de Escravidão'' procura traduzir em imagens o que é praticamente indizível em palavras. O filme, que chegou há pouco às nossas telas, foi precedido por debates e críticas, aqui como no contexto norte-americano. Não foram poucos os que acusaram o diretor Steve McQueen de fazer um filme vocacionado para o Oscar – o longa concorre hoje a nove prêmios. Outros destacaram o exagero sentimental, cenas apelativas e o recurso a um fundo musical que tem por objetivo deixar ainda mais tenso um assunto já por si nervoso.
Não por acaso a escravidão permaneceu por muito tempo no silêncio, nos EUA e no Brasil, ou foi tratada como um não tema. Talvez este seja um bom momento para fazer do passado uma indagação. Por que tantos e por tanto tempo sustentaram tal sistema?
O filme se baseia na narrativa de vida de Solomon Northup – negro livre de Nova York, sequestrado e vendido na década de 1840 como escravo para trabalhar nas fazendas nas fronteiras do sul do país. A publicação de sua história, em 1853, serviu como veículo para a difusão das novas ideias abolicionistas. Esquecido desde então, o relato de Northup voltou às livrarias propelido pelo lançamento do filme – no Brasil, saíram duas edições (pela Penguin/Companhia das Letras e pela Seoman).
A reconstituição feita no cinema, minuciosa, realista e muito colada ao livro, se detém nos aspectos sombrios do funcionamento da escravidão no sul dos EUA, trazendo para a tela as engrenagens do tráfico interno e ilegal, a organização do trabalho compulsório nas ''plantations'', as políticas senhoriais de controle, punição e compensação de escravizados, as regras de submissão, as relações inter-raciais e, sobretudo, a violência de um sistema que supõe a posse de um homem por outro.