Blog do Mario Magalhaes

O fôlego do Rio

Mário Magalhães

Rua do Catete fica alagada em noite de chuva forte na cidade do Rio de Janeiro

A rua do Catete, anteontem à noite, transformada em rio – Foto Divulgação/Centro de Operações Rio

 

Choveu no Rio como em romance do García Márquez, mas ninguém, até onde se sabe, morreu por causa do temporal. Nosso santo é forte. Pena que tem tirado sonecas demais. O aguaceiro provocou o caos em muitos bairros. O prefeito disse que a cidade passou no teste. Quem caminhou com a água até o joelho, como eu na rua São Clemente, sabe que foi reprovada. Continua com bueiros entupidos, encostas inseguras. Pior, Marcelo Crivella secou o orçamento para prevenção de enchentes. Não tem verba suficiente para isso, no entanto, mimetizando administrações passadas, torra dinheiro público em propaganda no intervalo do Jornal Nacional. Mais grave, o serviço destinado a alertar os cariocas sobre a iminência da tempestade devastadora calou. Para não alarmar os cidadãos, alegou o secretário de Ordem Pública, antigo comandante do Bope, em raciocínio disparatado. Crivella prometeu governar para as pessoas. A promessa permanece como declaração de intenções. Em sua gestão, só o carro oficial que transporta o prefeito acelera. Em cinco dias de junho, colecionou sete multas por excesso de velocidade. Nesta semana, com Crivella a bordo, bateu no Ford Ka de um estudante de direito. O Fusion com o prefeito não parou para checar o estrago. Seu automóvel corre, e a cultura engata marcha a ré. O município não honra os editais de fomento às artes. Reduz a subvenção financeira às escolas de samba. As mesmas cujos dirigentes, em maioria esmagadora, abençoaram o senador na campanha eleitoral contra Marcelo Freixo. Os dirigentes que usam como bem entendem os reais bancados pelos contribuintes, sem controle público digno do nome. E que posam de surpreendidos com o gesto do prefeito, embora a igreja à qual (legitimamente) Crivella pertence proclame que no Carnaval ''os espíritos malignos se fortalecem''. Somos a terra da vertigem das surpresas hipócritas. Capital do Império, capital da República, cidade-Estado da Guanabara, capital do Estado do Rio de Janeiro. Para a memória alcançar perrengue semelhante ao de hoje, só consultando os alfarrábios. O Elio Gaspari, rato de biblioteca (há pouco doou a dele para uma instituição pública), cravou uma data-referência: ''É possível que o Rio não tenha vivido um período de tão baixo astral desde 1711, quando a cidade foi saqueada e sequestrada pelo corsário francês Duguay Troin''. A história é maltratada: o Arquivo Público ficou sem funcionar por falta de energia _o Estado não pagara a conta de luz. O abandono da Uerj parece perseguição sádica. Como o Estado atrasa os salários, e nem o 13º de 2016 saiu, um primeiro-bailarino do Teatro Municipal virou motorista do Uber. Há servidor que nem essa alternativa tem. O Rio é o Estado que mais perde empregos na economia privada. Em Brasília, querem retardar o saque do FGTS dos demitidos em todo o país. O governador avisou que não sabe se fica até o fim do mandato. O presidente da Assembleia Legislativa pediu sua cabeça. Só agora Picciani descobriu que Pezão, seu correligionário, não nasceu para tocar um Estado do tamanho do nosso. O Pezão tão bajulado por certo jornalismo que o promovia como ''o verdadeiro gestor'' do que seria o excepcional _assim chaleiravam_ governo Cabral. Poderíamos apelar ao bispo. A ideia ocorreu antes a Sérgio Cabral: o presidiário recorreu ao arcebispo dom Orani como testemunha em processo judicial. Todo dia algum negócio fecha, empreendedores quebram, e mais trabalhadores amargam o olho da rua. No feriadão mais recente, a ocupação de leitos nos hotéis não chegou à metade. Donos de hotéis e albergues vão desistindo. O Nova Capela está pela bola sete. O velho restaurante da Lapa, contudo, também tem culpa. Juntou às garfadas no magnífico carneiro que serve _os incautos o tomam por cabrito_ as garfadas no bolso dos comensais. Seus preços dispararam, anos atrás. Evoca a Modern Sound, loja de música que marcou época em Copacabana. No final, só quem tinha dinheiro ou pose de sobra comprava lá, estabelecimento caríssimo. Estamos mais por baixo que o Cuéllar no Flamengo _o colombiano é bom, joga bem, mas não o escalam como titular. O colapso apresenta a conta em vidas. O projeto meia-bomba das UPPs se arruinou ao som de tiros. Que ferem, matam e castigam sobretudo os moradores dos lugares mais pobres. No sábado à noite, pertinho de casa, ouvi o tiroteio. No domingo, anunciaram a contabilidade _um morto, muito menos do que no cotidiano mais distante, no Alemão. Volta e meia pronunciam a expressão cretina ''balas perdidas'', a sagração da hipocrisia.

O Rio está mais sem fôlego do que ficou quem conseguiu ler o parágrafo acima. Não me lembro da cidade com tão pouco fôlego. Um dia ela o retomará. Talvez nunca tenha sido tão difícil.

(O blog está no Facebook e no Twitter )