Janio de Freitas, gigante do jornalismo, faz 85 anos
Mário Magalhães
O verbete ''Janio de Freitas'' abre assim, na enciclopédia Ela é carioca (Companhia das Letras), do jornalista Ruy Castro: ''Os que só conheceram Janio de Freitas de 1983 para cá, como colunista político da Folha de S. Paulo, não imaginam que, antes de tornar-se jornalista, em 1953, ele se formou em aviação civil, pilotou um DC-3, estudou jiu-jítsu e participou de um conjunto vocal, Os Modernistas, liderado por, ora veja, João Donato''.
Paulo Francis (1930-1997), um dos jornalistas brasileiros de maior projeção na segunda metade do século 20, assinalou: Janio é um ''dos dois maiores jornalistas da minha geração'' (ao lado de Cláudio Abramo). O depoimento consta de uma coletânea de artigos e crônicas de Francis, A segunda mais antiga profissão do mundo (Três Estrelas). Neste livro, organizado por Nelson de Sá, encontra-se outra observação de Francis, que não era dado a mesuras: ''Janio é um grande jornalista, decisivo como editor da minha geração. Logo, que ele esteja de volta à crista da onda, depois de uma ausência por excessivas preocupações morais, só surpreende quem não o conhece''.
O artigo saiu na Folha em novembro de 1983. Janio de Freitas atravessara a década de 1970 distante do jornalismo, ambiente então sufocado pela ditadura e seus amigos _nem ela nem eles gostavam de Janio. Daí as ''excessivas preocupações morais'' evocadas por Paulo Francis. Melhor excessivas que ausentes, eu emendo.
Nos idos de junho daquele 1983, quando ainda não caducara a expressão ''na crista da onda'', Janio veiculara uma revelação bombástica em sua recém-criada coluna no mesmo jornal em que Francis trabalhava: agravara-se a cardiopatia do general João Baptista Figueiredo, derradeiro presidente da ditadura; os médicos cogitavam nova cirurgia. Autoridades espezinharam Janio, classificaram-no como terrorista, e jornalistas desinformados ou submissos bancaram que a informação era falsa. Menos de um mês depois, o governante que preferia ''cheiro de cavalo ao cheiro de povo'' foi operado em Cleveland.
Janio foi introduzido à minha geração como o autor de furos antológicos como o do coração baqueado de Figueiredo. Um dos mais retumbantes foi a descoberta de cartas marcadas na concorrência para uma obra de custo bilionário, a ferrovia Norte-Sul. O repórter colunista não só descobriu a falcatrua, como a antecipou com um procedimento engenhoso. Publicou o resultado em código, na seção de classificados da Folha, antes do anúncio pelo governo. Desmascarado o conluio, anularam a licitação. Corriam o ano de 1987 e o governo José Sarney, a dita Nova República.
Naquela quadra histórica, Janio implodiu acertos semelhantes na administração estadual do Rio de Janeiro, governado por Wellington Moreira Franco. Nunca um jornalista incomodara tanto os negócios marotos das empreiteiras. Além das novidades factuais, ele oferecia análise densa, em contraste com o estilo simplório e vulgarizado por clichês que principiava a se expandir entre comentaristas políticos. A prosa classuda era característica inconfundível. Era, não. É, como evidencia uma reportagem que Janio escreveu outro dia, em inabitual concessão à primeira pessoa, nos 30 anos do furo da Norte-Sul (para ler, basta clicar aqui).
O que a minha geração de jornalistas desconhecia, ou a parcela dela apresentada a Janio de Freitas nos anos 1980, é que ele influenciara decisivamente o jornalismo brasileiro nas décadas de 1950 e 1960. O jovem que já era repórter quando Getulio Vargas disparou contra o próprio peito, em 1954, seria cinco anos mais tarde o condutor da reforma ou revolução do Jornal do Brasil. Depois de impulsionar em 1959 o JB à liderança do acirrado mercado carioca, onde dezenas de diários concorriam nas bancas, Janio dirigiu a reforma do Correio da Manhã, em 1963. Foi a vez de a circulação do Correio passar à frente. Em 1967, tocaria a reforma da Última Hora do Rio. Consagrara-se como, nos termos de antigo jargão profissional, grande ''cozinheiro de jornal''. Noutras palavras, um exímio editor.
A reforma-revolução do Jornal do Brasil foi uma das mais importantes da imprensa nacional _a mais importante, no juízo de muita gente que sabe das coisas. A primeira página era ocupada na maior parte por classificados de empregos para datilógrafas, alfaiates, auxiliares de escritório, encanadores (no século seguinte, as primeiras se reinventariam como digitadoras; os segundos tentam escapar da extinção). De um dia para o outro, sem eliminar os anúncios que ajudavam a pagar as contas do matutino, o insípido JB, fundado em 1891, renasceu. Em data cravada, 2 de junho de 1959, às vésperas dos 27 anos de idade do ocupante do posto hoje denominado diretor de redação ou editor-chefe _Janio de Freitas.
''Basta comparar a edição dessa terça-feira com a que havia circulado no domingo, 31 de maio'', rememorou o jornalista Plínio Fraga (Folha, 8 de março de 2016). ''Parecem jornais produzidos em séculos diferentes, colocando o JB à frente de seu tempo.''
Nublado pela politicagem, pelo ressentimento e pela inveja que maltratam o jornalismo, o porvir assistiria a alguns contemporâneos da façanha no Jornal do Brasil relativizarem a condição protagonista de Janio. Volta e meia leio que o líder da equipe de reformadores teria sido o ótimo jornalista Odylo Costa, filho (1914-1979). Basta uma breve consulta às hemerotecas para se certificar que, meses antes da virada do JB, Odylo já se transferira para a Tribuna da Imprensa, o combativo vespertino de Carlos Lacerda (1914-1977).
''O autor da reforma não foi Odylo Costa Filho, e sim Janio de Freitas, nos cadernos principais'', testemunhou Paulo Francis. Ruy Castro endossou: ''A imprensa brasileira lhe deve [a Janio] a reforma do Jornal do Brasil, em 1959. […] Não foi somente uma reforma gráfica, como se costuma ensinar hoje nas escolas de 'comunicação'. Foi uma profunda reforma editorial, que só poderia ter sido feita por um jornalista. Por desinformação ou má-fé, a paternidade dessa reforma é atribuída a outros''.
O que impressiona mais em Janio não é ele ter deixado sua marca no jornalismo já aos 26 anos. Nem suas reminiscências saborosas e cabeludas das passagens pelo Diário Carioca e pelas revistas Manchete e O Cruzeiro. Ou das capas de disco que desenhou, como em dois de Nara Leão (leia aqui as lembranças de Janio sobre a cantora). Ou de suas venturas e desventuras no combate à ditadura parida em 1964.
Mais assombrosa é sua capacidade de manter a guarda alta depois de tantas pelejas jornalísticas. Num tempo em que jornalistas se juntam para manifestar a mesma opinião, desprezando o pluralismo de ideias e se empenhando em convencer pelo cansaço, Janio não teme escrever o que lhe vai na cachola. Sem se importar em ser igual, diferente, se vai agradar a esse ou contrariar aquele. Simplesmente disposto a exercer com dignidade o ofício apaixonante que abraçou 64 anos atrás. A difusão de informações pela internet renovou seu público. Muitíssimos jovens, fiéis leitores seus, concordando ou discordando dele, jamais o haviam lido no papel. Descobrem agora a pena que permanece afiada.
Minha bronca com Janio: ele deve à história do jornalismo e do Brasil um livro de memórias. Tomara que, na moita, já o esteja preparando.
Neste 9 de junho de 2017, Janio de Freitas, gigante do jornalismo, faz aniversário de 85 anos.
Tim-tim.