Blog do Mario Magalhaes

A alma do Centenário

Mário Magalhães

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O esqueleto do estádio Centenário, em Montevidéu; o mais importante é a alma – Foto Folhapress

 

É provável que ao ser construído para a primeira Copa, em 1930, o estádio Centenário espantasse pela grandiosidade. Quase cem mil torcedores chegariam a se espremer na arena do século 20 onde as disputas se dariam sem bigas e lanças, leões e tigres, mas com gladiadores correndo em torno da bola de couro. Hoje cabe menos gente. E o esqueleto deixou de impressionar. Na cancha sagrada de Montevidéu, o que encanta é a alma.

Lá estive pela primeira vez em agosto de 1993, quando as seleções uruguaia e brasileira, mal das pernas, se desesperavam em busca de uma vaga no Mundial do ano seguinte. De cabeça, o Raí marcou para nós. Depois da expulsão do Ricardo Rocha, sobreveio o sufoco, e o Fonseca empatou para eles. O Parreira foi xingado de burro por conterrâneos que haviam atravessado a fronteira. Os matemáticos cravaram em 33% as chances de o escrete ir aos Estados Unidos. No confronto derradeiro, eliminaríamos a celeste no Maracanã, com dois gols do Romário.

O baixote que viria a brilhar no tetra não estava no Centenário naquele 1 a 1. Ele se enfurecera por ficar no banco num amistoso no Beira-Rio, e o Parreira e seu escudeiro Zagallo o barraram. Porém a dupla de ataque era supimpa, Bebeto e Müller. Torcia por eles, só que meu favorito em campo era outro, Enzo Francescoli. Se eu disser que esse uruguaio, meia ou ponta-de-lança, jogava mais do que hoje o Suárez e o Cavani, tem gente que ralhará comigo. Mas jogava. E declarava que se inspirava num brasileiro, um galinho nascido no subúrbio de Quintino.

No Centenário, vê-se o jogo e escuta-se o eco das peleias de outrora. Não tenho idade para ter testemunhado o Obdulio Varela batalhar ali. Nem no Maracanã, onde ele e seus companheiros calaram a multidão na conquista de 50. Quem o viu no épico do Rio foi o jovem Mario Jorge Lobo Zagallo, que estava de uniforme na arquibancada, a serviço da Polícia do Exército. Por décadas vigorou a historieta segundo a qual o uruguaio teria esbofeteado o brasileiro Bigode e cuspido nele. Tudo balela, tempero do complexo de vira-latas que sofreria um abalo em 58. Em 93, tentei conversar com o Obdulio. Sem paciência para me receber em sua casa simples nos arredores da capital, ele topou falar por telefone.

Aos 75 anos, não se interessava mais por futebol. Uruguai e Brasil se reencontrariam. “Não sei desse assunto, não estou a par”, ele deu de ombros. Não se emocionava mais com o esporte em que se consagrou como um gigante? “Isto nunca me toca.” O futebol lhe deixou boas lembranças? “Não tenho boas lembranças.” Deixou-lhe tristezas? “Sim, muitas.” Ao ouvir novas manifestações de desencanto, observei que, pelo visto, o futebol acabara para ele. “Exatamente. Acabou para mim.” Ainda fiz uma pergunta: é bom saber que no Brasil o senhor é um mito? “Não. Desse assunto não quero mais falar.”

E não falamos mais. Cansara-se o guerreiro sobre quem o Nelson Rodrigues escrevera que “extraiu de nós o título como se fosse um dente”. E, mais tarde, ao prever a valentia da seleção comandada pelo João Saldanha, comparara: “O escrete do João terá onze Obdulios”.

Obdulio Varela morreria pobre, ressentido e sem dentes noutro agosto, três anos depois da nossa conversa. Lembrei-me dele à noite, ao me assombrar com a seleção que no Centenário enfiou 4 a 1 nos, como os chamam nas bandas do Sul, castelhanos. Recordei também do que, lá no Uruguai, o Zagallo ensinou sobre medrar ou não diante da torcida local: “Quem ganha no grito é camelô”.

O Centenário não é lugar para fracos, grita sua alma. Ontem os obdulios vestiram a camisa verde e amarela.

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