Blog do Mario Magalhaes

Dias de inferno

Mário Magalhães

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Roberto Carlos, no especial de fim de ano da TV Globo em 2016 – Foto Mauricio Fidalgo/Divulgação

 

E não é que o Roberto Carlos voltou a cantar Quero que vá tudo pro inferno? Esse clássico da Jovem Guarda lançado em 1965 tinha sido banido do repertório do seu compositor, parceria com Erasmo Carlos, e primeiro intérprete. Por causa do transtorno obsessivo compulsivo e da devoção religiosa, Roberto enticara com a palavra inferno.

No especial de fim de ano da Globo, ele fez charme e suspense, sem perder a afinação: “Quero que você me aqueça nesse inverno, e que tudo mais vá… pro inferno”. Repetiu o refrão várias vezes, esconjurando o bloqueio. Sorriu e disse, como quem se desculpa: “Isso é só uma força de expressão, né?”.

Na mesma semana do programa da TV, garimpando velhos documentos, dei com um telegrama enviado em 22 de junho de 1966 do Rio para Washington. O destinatário era o Departamento de Estado. O remetente, Philip Raine, encarregado de negócios interino da embaixada dos Estados Unidos no Brasil. Na mensagem, encabeçada pela classificação “confidencial”, o diplomata menciona um hit: Quero que vá tudo pro inferno.

Em seis páginas, Raine analisou o “Protesto social nas artes”, título do relatório. Escreveu que as canções de Tom e Vinicius não eram mais conhecidas nos EUA devido às traduções excessivamente literais das letras. Anotou que a censura proibira a peça de teatro O berço do herói, de Dias Gomes.

Observou que a bossa nova perdia terreno para “o muito menos original iê-iê-iê, escola do cantor Roberto Carlos, cuja letra mais famosa é ‘I want you keep me warm this winter, and everything else go to Hell’. Essa última frase tem sido muito citada na piada ‘O que Roberto Carlos e Roberto Campos têm em comum? Ambos querem que vá tudo pro inferno!’”. Ministro do Planejamento da ditadura, Roberto Campos conduzia um arrocho impiedoso.

Dias depois de descobrir a pepita de 1966, assisti pela primeira vez a Bethânia bem de perto, filme também daquele ano. É um tesouro histórico de 34 minutos. Os diretores Eduardo Escorel e Júlio Bressane testemunham Maria Bethânia aos 19, 20 anos, já vivendo no Rio e cantando pra chuchu.

Numa conversa no apartamento de Ipanema onde Jards Macalé morava com a mãe, perguntam à garota sobre Roberto Carlos. Ela pouco sabia dele, e não era esnobação: “Como eu posso esnobar Roberto Carlos? O cara mais famoso do Brasil”. Contou que o ouvira “cantar Quero que vá tudo pro inferno. Eu acho a música uma pobreza”.

Muitos anos mais tarde, os dois artistas se encontrariam no disco As canções que você fez pra mim. São onze composições de Roberto e seu irmão camarada, na voz divina de Bethânia. O álbum de 1993 ainda hoje embala paixões e tempera reminiscências de amores.

Se não for pedir demais à Bethânia, será que ela não toparia gravar um belo roquezinho romântico das antigas? Inspirado pela saudade de uma namorada de Roberto Carlos, seu nome é Quero que vá tudo pro inferno.

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