Blog do Mario Magalhaes

Sabáticas: O ratatouille de Anton Ego e o rosbife da vovó

Mário Magalhães

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Em ''Ratatouille'', Anton Ego se comove com o prato de sua infância, acompanhado de vinho nacional

 

Os dois clichês combinam como arroz e feijão, picanha e sal grosso, molho de tomate e queijo parmesão: nunca houve comida tão boa quanto a da vovó; a convicção decorre mais das reminiscências de tempos menos bicudos do que de virtudes verdadeiras, da velha senhora, em forno e fogão.

Acontece que nem sempre o que parece é mesmo lugar-comum, por mais desumano que seja dissociar paladar e memória afetiva. Ainda estou para descobrir vatapá igual ao da minha vó.

Ou frango ao molho pardo. Semanas atrás eu me deliciava em Diamantina com uma galinha à cabidela, outro nome do prato. Não era como a da minha vó, mas o grande mestre-cuca Vandeca quase chegou lá.

Espantado com minha volúpia à mesa, um colega norte-americano quis saber o que me extasiava. Respondi com a tradução literal em inglês para galinha em seu próprio sangue. O gringo esboçou cara de nojo, e eu tripudiei, contando que na infância testemunhava minha vó, com uma faca bem afiada, degolar os frangos que comprava vivos na feira. Eficaz como um serial killer, ela sangrava os bichos sobre uma bacia.

Daquela época pré-histórica, em que forno micro-ondas só existia no desenho animado Os Jetsons, nada se compara ao rosbife sublime servido pela minha vó. A minha tia até que se esforça, mas se esqueceu da carne usada na obra-prima. Só lembra que não era de primeira.

Conhecedora da minha devoção pelo rosbife da avó já falecida, uma amiga indicou um mercadinho em Copacabana, e eu virei freguês. O rosbife é tenro, e não seco como tantos que nos empurram por aí. Apimentam-no, mas sem destemperos de incendiar a língua. Bom que só, contudo aquém do rosbife da minha vó.

Persisto na busca pelo rosbife campeão na minha arqueologia dos sabores. Fantasio que a descoberta será como numa cena do filme Ratatouille: o crítico gastronômico Anton Ego, impiedoso como exige o clichê, prova um quitute-surpresa criado pelo chef Rémy, um ratinho. À primeira colherada do ratatouille reinventado, Ego se emociona ao recordar o original que sua mãe cozinhava outrora na casa de campo.

Por mim, tudo bem: o cozinheiro pode ser rato, gato ou gente. Sei que o reencontro com o rosbife da vó Esmeralda me deixará tão comovido quanto Anton Ego diante do seu ratatouille.

(Publicado originalmente na revista Azul Magazine, dezembro de 2013)

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