Sabáticas: O dia em que eu quase matei a doutora Nise da Silveira
Mário Magalhães
Apresentei-me, e do outro lado da linha veio a interjeição: “Ahnn?”
Repeti: “Meu nome é Mário Magalhães”.
“Ahnn?!?”, ouvi de novo.
Achei que a senhora de 82 anos não escutava direito e me esgoelei: “Mário Magalhães, repórter!”
E o silêncio sepulcral caiu entre nós.
Sepulcral ao pé da letra. Eu não sabia que a psiquiatra Nise da Silveira, minha interlocutora, era viúva do célebre sanitarista Mário Magalhães. O sobrenome português do médico tinha raiz alagoana. O meu, gaúcha. Éramos homônimos, não parentes. Fiquei com a impressão de que, feito assombração, quase matara Nise de susto.
Procurei-a para entrevistá-la sobre o filme Imagens do Inconsciente, que Leon Hirszman lançava em 1987. Nos três episódios, com três horas e 25 minutos ao todo, o texto era da lavra da médica. A lembrança mais marcante que ficou do documentário foram as cores em profusão, fulgurantes, urgentes.
O cineasta inventariou pinturas, esculturas e desenhos de autoria de doentes esquizofrênicos acompanhados por Nise no Hospital Psiquiátrico Pedro II, no bairro carioca do Engenho de Dentro. Avessa à maluquice da violência de tratamentos em voga no século XX, como lobotomia e choques elétricos, a doutora franzina transformou a seção de terapêutica ocupacional num ateliê de artes.
Por lá passaram Fernando, Adelina, Carlos, Emygdio, Raphael, muita gente. “O pintor é feito um livro que não tem fim”, filosofou Fernando Diniz, o único ainda vivo no lançamento do filme de Leon. O que na origem era psicoterapia revelou artistas plenos, aclamados pelo crítico Mário Pedrosa.
Nise cercava-se de gatos em seu apartamento, na rua Marquês de Abrantes, onde me recebeu no Rio. No Pedro II, ela incentivava a convivência dos internos com animais, sobretudo cachorros, que denominava coterapeutas. Seus desafios e batalhas a levaram a se corresponder com o mestre suíço Carl Gustav Jung.
A psiquiatra rebelde, seus artistas e os Mários Pedrosa e Magalhães voltaram, em Nise: O Coração da Loucura, de Roberto Berliner. O filme retrata o regresso da protagonista ao hospital, em 1944, depois de anos afastada em virtude de perseguição ideológica da ditadura do Estado Novo. Presa política em 1936 e 1937, ela se tornaria personagem de Memórias do Cárcere, obra-prima do escritor Graciliano Ramos, com quem esteve em cana.
Na pele de Glória Pires, Nise ressurge aguerrida e exuberante. Ela viveria até 1999. Sobre Leon Hirszman, a doutora me falou: “É uma pessoa inteligente, lúcida e tranquila”. O diretor morreu três meses mais tarde. Leon dizia que “o desespero da dificuldade já fez sair vários tipos de flor”. Como no Engenho de Dentro.
(MM, publicado originalmente na revista Azul Magazine, junho de 2016)