Blog do Mario Magalhaes

Olimpíada: meu artigo para o ‘New York Times’

Mário Magalhães

Rio de Janeiro: vai começar – Foto Charlie Riedel/Associated Press/The New York Times

 

A convite do ''New York Times'', escrevi um artigo sobre a Olimpíada. Acaba de entrar no ar, na edição em espanhol do jornal na internet. Abri com Tom Jobim e fechei com Lota de Macedo Soares. Para ler em castelhano, basta clicar aqui. O original em português está reproduzido abaixo.

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A Olimpíada da incerteza

Por Mário Magalhães

Para The New York Times

 

“O Brasil não é para principiantes”, costumava dizer o compositor Antônio Carlos Jobim. A Olimpíada do Rio, muito menos, a despeito dos vaticínios de pitonisas que alardeiam balanços categóricos dos Jogos, sombrios ou solares, antes mesmo da primeira medalha.

O Brasil já experimentara essa epidemia de profetas nos anos que antecederam a Copa do Mundo de 2014. Não faltava quem previsse malogro organizativo desmoralizante. Mais tarde, apesar de problemas numerosos, constatou-se que a estrutura da competição havia sido melhor que as dos Mundiais dos Estados Unidos (1994) e do Japão (2002). Seu nível igualou os de França (1998) e Coreia do Sul (2002, anfitriã em parceria com os japoneses). Ninguém me contou, eu testemunhei: cobri como repórter todas essas competições.

Em campo, a seleção alemã humilhou a brasileira em 2014, com uma goleada de 7 a 1 que se transformou em metáfora para fracassos degradantes. Fora dos gramados, nos 7 a 1 do pós-Copa, alguns estádios novos e caros permaneceram quase sem uso; obras se deterioraram ou ficaram até hoje inacabadas; e surgiram indícios eloquentes de corrupção na construção de arenas esportivas.

É recomendável que prognósticos para a Olimpíada considerem o aprendizado de dois anos atrás. E também o passado mais remoto. Está a cidade capacitada para oferecer segurança? Em 1992, na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, esteve. Idem em 1999, na cimeira de chefes de Estado e governo da América Latina, Caribe e União Europeia. O que torna 2016 mais imprevisível é o temor de que ações terroristas do estrangeiro desembarquem no Rio.

Na iminência da cerimônia de abertura, a incerteza caracteriza os Jogos. Em 2014, falhas foram corrigidas ou amenizadas no último momento. Não se sabe se haverá solução para os erros de 2016, como o vexame da vila olímpica que recebeu delegações sem estar pronta. A tradição nacional é deixar para resolver tudo em cima da hora. Nem sempre o improviso funciona.

Em junho de 2013, 28% dos brasileiros entrevistados pelo Instituto Datafolha afirmaram que não tinham nenhum interesse nos Jogos vindouros. O índice ascendeu para 51% na pesquisa de julho de 2016. Numa nação apaixonada por esportes, sobretudo o futebol, o começo das partidas e provas pode afetar a opinião sobre a Olimpíada. Ou não.

A herança olímpica para a cidade tem cores e tons diversos. Novos corredores expressos de ônibus, expansão da malha do metrô e implantação de bondes high-tech são bem-vindos. Mas a promessa de despoluir a baía de Guanabara pútrida e salvar lagoas agonizantes não passou disso: promessa não cumprida.

Uma reforma urbanística revitalizou o centro histórico. Milhares de cariocas pobres, contudo, foram removidos de suas casas devido aos Jogos. A transparência das contas públicas é limitada, o que impede conhecer plenamente a situação das finanças municipais.

Três construtoras ergueram o Parque Olímpico. Duas delas, Norberto Odebrecht e Andrade Gutierrez, haviam integrado o consórcio que reformou o Maracanã para a Copa. Executivos das duas companhias denunciaram à Justiça que, do R$ 1,2 bilhão (equivalentes a US$ 526 milhões em junho de 2014) de recursos públicos destinados ao estádio, 5% corresponderam a propinas embolsadas pelo então governador do Estado. A Olimpíada é promovida pela prefeitura, não pelo Estado. O modus operandi das empreiteiras terá sido diferente nos Jogos?

O escrutínio escrupuloso do legado olímpico terá de distinguir males recentes de mazelas atávicas. Em 2015, 77% dos mortos pela polícia estadual do Rio de Janeiro em alegados confrontos eram negros e, de acordo com a classificação oficial, pardos. Nenhuma novidade. Em 1888, o Brasil foi uma das derradeiras nações a abolir a escravidão.

Modesto no ranking de medalhas olímpicas, o país ostenta a infame condição de um dos líderes em desigualdade social. Com todas as precariedades notórias, os apartamentos da vila olímpica serão vendidos à classe média a preços inacessíveis à imensa maioria dos cidadãos. O drama não são os Jogos, e sim o cotidiano.

Até o século 19, os senhores escravagistas habitavam a casa grande das fazendas. Os escravos, a senzala. A mentalidade passadista sobrevive. Carlos Carvalho é dono da Carvalho Hosken, uma das empreiteiras que levantaram o Parque Olímpico, no mesmo lugar onde serão construídos condomínios residenciais de luxo. O empresário foi indagado pela BBC Brasil sobre moradores pobres de uma comunidade vizinha.

Carvalho respondeu: “Você não pode ficar morando num apartamento e convivendo com índio ao lado. Nós não temos nada contra o índio, mas tem certas coisas que não dá. Você está fedendo. O que eu vou fazer? Vou ficar perto de você? Eu não, vou procurar outro lugar para ficar”.

O Datafolha informou que 63% dos brasileiros creem que os Jogos lhes trarão mais prejuízos que benefícios. É possível que tal percepção seja influenciada pelo contraste entre a euforia do Brasil de 2009, quando o Rio venceu a concorrência para sediar a Olimpíada, e a depressão de agora.

Há sete anos, o país crescia, retirava dezenas de milhões da miséria absoluta e caminhava para o pleno emprego. A renda dos mais pobres disparava, e a dos mais ricos subia. A Rio-2016 se descortinava como a consagração de um Brasil protagonista. Os Jogos impulsionariam a cidade como os de Barcelona em 1992. Eram dias de esperança.

Em 2016, o desemprego castiga 11 milhões de pessoas, a renda dos trabalhadores cai, o produto interno bruto despenca mais de 3%, o zika vírus mata, maltrata e assusta. Em vez da miragem de Barcelona, ronda o espectro de Montreal, cuja economia foi arruinada pela Olimpíada de 1976. São noites de frustração.

Descobriu-se roubalheira disseminada na administração pública, com a participação dos principais partidos políticos. Um terço dos brasileiros ignora o nome do presidente da República interino, que só receberia 5% dos votos se o pleito presidencial de 2018 fosse antecipado para 2016, como defendem 62% dos eleitores. Michel Temer, o presidente impopular, estará no Maracanã na cerimônia de abertura.

No livro Flores raras e banalíssimas, a escritora Carmen L. Oliveira narra a relação entre a poeta norte-americana Elizabeth Bishop e a brasileira Lota de Macedo Soares, que na década de 1960 conduziu a construção de um parque urbano no Rio tão ou mais exuberante que o Central Park nova-iorquino. Anos antes da criação do parque, ao mostrar a Bishop uma casa em obras, Lota lhe disse: “Aqui no Brasil as coisas são meio empíricas. Mas no final tudo dá certo”.

Para o bem da Olimpíada, é bom que o otimismo de Lota prevaleça.

Mário Magalhães é jornalista e escritor. Foi ombudsman do jornal Folha de S. Paulo. Nasceu e vive no Rio de Janeiro. Cobriu quatro Copas do Mundo e os Jogos de Atlanta-1996.

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