Blog do Mario Magalhaes

As quatro privadas do centro de imprensa 2016 e os banheiros de Suwon 2002

Mário Magalhães

Banheiro público em Suwon – Foto reprodução

 

Uma coisa não tem muito a ver com a outra, mas a reportagem de Lauro Neto sobre quatro privadas para centenas de jornalistas num centro de imprensa dos Jogos de 2016 me fez lembrar de uma história prosaica da Copa de 2002. Obcecada em superar _deu de dez_ o Japão como organizadora do Mundial disputado nos dois países, a Coreia do Sul construiu na cidade de Suwon banheiros públicos com a ambição de serem os melhores do planeta. Visitei-os, e contei o que vi na ''Folha'', na croniqueta reproduzida abaixo.

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Neste lugar solitário

Parece coisa de maluco, e talvez seja mesmo. Mas uma providencial maluquice, como bem sabe qualquer um que já tenha passado pelo sufoco de não encontrar um banheiro decente na hora do aperto _e quem não passou?

A prefeitura da cidade sul-coreana de Suwon teve a ideia: proporcionar aos turistas algo mais do que o novo estádio de futebol e o sítio histórico da fortaleza Hwaseong, do século XVIII. Resolveu superar “um atraso de dez anos em relação à cultura japonesa de banheiros públicos”, de acordo com seus relatórios, e erguer os mais belos do mundo. Está convencida de que conseguiu.

Haja estranheza. Ao chegar a um dos 33 banheiros em operação, penetra-se numa antiga fortaleza, numa tradicional casa coreana, numa de arquitetura contemporânea, noutra em forma de pote ou castelo. Cada banheiro com uma fachada própria. Dentro diferem, porém exibem traços comuns. São repletos de flores e tocam música, clássica ou do tipo, vá lá, “relaxante”. A obsessão com flores é tamanha que nas alas masculinas, até encerrar o serviço, o usuário contempla sentado quadros emoldurados com imagens florais. De pé, em mictórios coloridos, buquês naturais polinizam diante do nariz.

No banheiro Banditbuli, o terraço _o banheiro tem terraço!_ é um mirante debruçado para a montanha e o lago. Os construtores não quiseram privar os visitantes masculinos de tal cartão postal nem na hora do chuvisco. “A parede em frente aos mictórios é feita de vidro para que se aproveite a vista e se ouça música”, divulga a prefeitura num catálogo promocional.

Sobre música: não se conhece o critério, se algum estudo dedicado ao efeito de suas composições em certos esforços demasiadamente humanos, mas o veneziano Antonio Vivaldi (1678-1741) foi honrado com o batismo de um banheiro com o seu nome. Assim, o cidadão se dirige até a estação ferroviária Seongkyunngwandae, caminha cem passos e alivia seus dramas ao som de As Quatro Estações.

Pode demorar, e nisso também pensaram. À entrada dos banheiros instalaram prateleiras com livrinhos e folhetos, para ler durante as urgências. Não precisa devolver. Os livros são breves, para evitar filas. Nada de tijolos como Guerra e Paz ou a biografia do Che Guevara escrita por Jon Lee Anderson.

Banheiro é coisa séria. Um jornalista esportivo paulista penou nos primeiros meses de casamento. De tal modo habituado à residência dos pais, com quem morava, não conseguia frequentar o sanitário do novo lar quando determinadas atitudes urgiam. Pegava um ônibus, suava por cinco minutos e aportava na velha e hospitaleira privada de papai e mamãe.

No luxo dos banheiros de Suwon, o ocidental em geral, e o brasileiro em particular, ressente-se da ausência de grafitos, as mensagens escatológicas ou obscenas que motivam teses acadêmicas e livros. Aqui, ninguém escreve nada. Não se vê, em nenhum idioma, algo como o clássico verde-amarelo, que contempla variações vocabulares conforme o Estado:

“Neste lugar solitário

Onde a vaidade se apaga

Onde todo fraco faz força

E todo valente se caga''.

Os banheiros mais simples contam com vasos comuns, com assento protegido por um plástico que gira a cada visita. Outros são de madeiras nobres, figurinhas fáceis de revistas de decoração. Uma luz dentro de um quadro florido identifica o sinal de ocupado. Os espelhos são vastos, e as toalhas, de todo o tipo, apesar das rajadas de ar que secam de verdade. Vidros com desenhos em relevo separam mictórios. Cada cabine areja-se com uma ventilação específica. Funcionários borrifam perfume. A energia é solar.

No banheiro Daseulgi, na ala feminina, ocupam o mesmo espaço um sanitário de adulto, para a mãe, e um de criança, para o filho. A suntuosa bancada de uma das pias reproduz “o charme dos toaletes dos cafés”, envaidece-se a prefeitura. No caminho para os sanitários, instalaram aquários coloridos. No banheiro Pot, secadores de cabelo acodem as mulheres.

Esses serviços são gratuitos. Os banheiros consumiram de 34 mil a 48 mil dólares cada um. Espalham-se por toda a cidade, que tem 913 mil habitantes e dista cinquenta quilômetros de Seul.

Instalações como essas teriam sido preciosas no episódio da Maldição de Montezuma. Na Copa de 86, no México, os jornalistas brasileiros foram vítimas de estrago intestinal provocado pela culinária nativa. Houve descompasso de tempo e lugar. A Maldição de Montezuma e os banheiros de Suwon nasceram um para o outro.

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