Lição de Consuelo de Castro, a amiga epistolar
Mário Magalhães
Para quem não conheceu a autora de teatro Consuelo de Castro, conhecendo-a, ou conheceu-a, não conhecendo, uma de suas virtudes mais assombrosas foi não perder a capacidade de se indignar. E também de se comover. Até o fim.
Consuelo morreu de câncer na madrugada de ontem, aos 70 anos, em São Paulo. Seu filho, Pedro Venceslau, escreveu sobre a mãe. Como escreveram Camila Appel, Nelson de Sá e Aimar Labaki.
Conheci Consuelo lendo sua peça ''À prova de fogo'', escrita nos anos 1960 em meio à incandescência das batalhas contra a ditadura. Censurada, demoraria a ser montada. A dramaturga madura manteria o punch da estreante.
Nunca estivemos juntos, mas de janeiro do ano retrasado até o junho de sua despedida trocamos e-mails. Quase sempre breves e urgentes, as conversas começavam com a recusa de Consuelo ao que tanta gente boa passou a tolerar. Ela rejeitava o comodismo, repelia a mediocridade, cultivava a curiosidade, era amor e fúria.
Acho que não ficaria chateada por eu compartilhar algumas mensagens dela. É um modo de homenageá-la. Suprimi comentários agudos sobre peças, uma prosa de memória romântica endereçada a um colega dramaturgo (belíssima, ignoro se ficcional) e pitacos que só se dão entre amigos.
Releio-a agora: ''Isso aí, amigo querido, pau nesses bostas!'' Boa inspiração, para sempre.
Consuelo não era ligada em futebol, mas viveu com paixão a Copa no Brasil. Reconheceu-se num jogo:
''O futebol está me dando lições: essa virada da Holanda entra num registro muito pessoal: quando, junho do ano passado, descobri que tinha uma recidiva de câncer _só que desta vez inoperável, embora seja, sem modéstia, uma pessoa emocionalmente forte, me abati, vi o beco. Então pensei: e se o Drauzio estiver sendo exato? E se a perspectiva de cura não for só uma esperança gentil? De todo modo, vou botar fé na químio. Não me restava alternativa a não ser acreditar. Fui vencendo todas as etapas da minha copa pessoal e dois meses atrás o último PET SCAN atestou que os tumores regrediram cerca de 80 por cento. A químio passou a quinzenal, estou cheia de energia, fazendo minha própria comida, escrevendo, lendo muitooo, estudando história do Brasil, curtindo os amigos, os colegas de ofício, a família e sobretudo o Antônio, meu netinho E então penso que só quando o árbitro diz é que acabou. Até o último minuto do segundo tempo dá tempo de ganhar''.
A correspondência é de 29 de junho de 2014. Por mais dois anos e um dia Consuelo não se entregou. Que grande e generosa lição.
Valeu, Consuelo!
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Trechos de mensagens de Consuelo de Castro
Quando menina, aprendi com o maestro Mignone, no Colégio Rio Branco, a ouvir/cantar o hino nacional com a mão no coração. É o que automática e afetivamente ainda faço: a mão vai direto ao peito aos primeiros acordes e quase sempre me emociono. Recentemente tenho percebido que a mão hesita, treme, e as lágrimas já não vêm.
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Chorei.
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Será que vamos para o Caos TOTAL? (Agosto de 2014)
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Que depoimento forte, que mulher forte, que emoção! (Sobre o testemunho da jornalista Miriam Leitão sobre a tortura)
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Se ele não é essa bola toda e se tem tanto tempo ainda pela frente, por que o escolheram? (Sobre a escolha de Dunga para treinar a seleção, depois da Copa; eu não soube responder)
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Um vigia caiu moribundo na porta de um hospital da zona leste daqui, ficou gemendo e clamando por socorro por mais de uma hora e ninguém o atendeu porque não tinha plano de saúde. Ele morreu.
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Te mandei um texto elogiando o Rei Lear do Juca? Saiu na ilustrada ontem! Dá um jeito de ir ver! E uma obra de gênio!
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Não tiro o sorriso do caminho porque não tenho sorrido.
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Amigo, juro que vou parar de te encher com minhas perguntas leigas. Mais essa: dizem sites e blogs que os 2 times estão se lixando para o terceiro lugar, estão tão entediados, mas o Brasil não devia estar contente com a chance de, como disse o locutor da Globo, recuperar um pouco a dignidade? Se o Felipão queria fazer valer a tese do apagão, não seria essa a chance, já que a Holanda é um timão? E por que não treinar direito os meninos, se ninguém tem moral ali pra deitar em berço esplêndido? As horas disparatadas são porque a químio provoca muito xixi e acordo muito por isso! (Mensagem enviada de madrugada, antes da disputa entre Brasil e Holanda pelo terceiro lugar na Copa)
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Já não tenho time brasileiro nem paulista, continuarei não tendo. Estou muito puta com a mistificação toda, me sentindo ridícula, devia ter continuado na filosofia antiga: foda-se copa, foda-se rojão que enche o saco. Vuvuzela, neymares e cristianos milionários, fodam-se equipes e times, vão vender ingresso superfaturado pra putaqueospariu, seus escrotos, enfiem esses estádios no cu, que se interditem todas as ''obras'' de infra-estrutura pra que não caia mais nenhum viaduto em cima de ninguém! Eu quero ver essas chuteiras penduradas em praça pública tomando cuspe do povo.
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A cabeça das pessoas, em regime de MANADA, é capaz de demências quase irreais.
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Hoje vai ser foda, tô com um mau presságio, o dia amanheceu chorando e de mau humor.
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É cada filhadaputaaa! (Quando colombianos acusaram injustamente Neymar de fingir lesão na Copa)
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Uma das mais gratas emoções que senti foi ver essa imagem do David Luiz e do menino colombiano sem camisa se abraçando. Estou chorando.
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O futebol está me dando lições: essa virada da Holanda entra num registro muito pessoal: quando, junho do ano passado, descobri que tinha uma recidiva de câncer _só que desta vez inoperável, embora seja, sem modéstia, uma pessoa emocionalmente forte, me abati, vi o beco. Então pensei: e se o Drauzio estiver sendo exato? E se a perspectiva de cura não for só uma esperança gentil? De todo modo, vou botar fé na químio. Não me restava alternativa a não ser acreditar. Fui vencendo todas as etapas da minha copa pessoal e dois meses atrás o último PET SCAN atestou que os tumores regrediram cerca de 80 por cento. A químio passou a quinzenal, estou cheia de energia, fazendo minha própria comida, escrevendo, lendo muitooo, estudando história do Brasil, curtindo os amigos, os colegas de ofício, a família e sobretudo o Antônio, meu netinho E então penso que só quando o árbitro diz é que acabou. Até o último minuto do segundo tempo dá tempo de ganhar.
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E que lindo o que o Casagrande falou sobre o povo brasileiro merecer esse momento de alegria. Ele falou da ditadura, falou de história, interessante esse Casa.
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Lugar de demônio é no inferno, mas no inferno terreno! (Sobre o torturador e assassino Paulo Malhães, que morreu sem ter sido punido por seus crimes na ditadura)