Na Alemanha e na Argentina, nunca é tarde para fazer justiça. E no Brasil?
Mário Magalhães
Qual o sentido de levar ao tribunal um ancião de 94 anos, sentado numa cadeira de rodas, e julgá-lo por crimes cometidos há mais de sete décadas?
Mais ainda, de condená-lo a cinco anos de prisão, apesar do direito de permanecer em liberdade enquanto tramita sua apelação?
O alemão Reinhold Hanning integrou a juventude nazista, militou como voluntário na SS, a tropa de choque hitlerista, e serviu como guarda em Auschwitz.
Permaneceu de janeiro de 1942 a setembro de 1943 no campo de extermínio estabelecido na Polônia.
Foi submetido ao banco dos réus por acusação de cumplicidade na morte de ao menos 170 mil seres humanos, na maioria judeus.
O veterano nazista alegou inocência, mas pediu desculpas por ter pertencido a uma organização criminosa.
Da mesma idade dele, Leon Schwarzbaum, sobrevivente de Auschwitz, respondeu: ''Eu perdi 35 parentes. Como você pode se desculpar por isso?''
Qual o sentido de punir um homem no outono da vida?
Um sentido generoso, justo e escrupuloso: além de honrar as vítimas do passado, desincentivar novos holocaustos.
A punição de Hanning acena às futuras gerações: não repitam as de outrora, porque a impunidade não vingará.
Violações graves de direitos humanos são imprescritíveis.
Leniência com o horror estimula sua permanência e reedição.
A Alemanha, o velho palco da selvageria, acaba de dar exemplo ao julgar o cúmplice da barbárie.
Bem como a Argentina, onde foram condenados participantes da Operação Condor, o consórcio de ditaduras sul-americanas que nos anos 1970 e 1980 perseguiu, torturou, matou e sumiu com opositores políticos, mesmo além de suas fronteiras.
O general Reynaldo Bignone, 88, foi o último presidente da ditadura que vigorou na Argentina de 1976 a 1983.
Em 2011, já havia sido condenado a prisão perpétua por crimes contra a humanidade.
Agora é novamente declarado culpado. Desta vez, pelo desaparecimento de mais de cem cidadãos em ações da Operação Condor.
A pena de 20 anos não vale um só dia a mais de cana, mas contém valor simbólico vigoroso, o de recusar a impunidade.
Dos 18 militares denunciados, 17 receberam penas de oito a 25 anos de prisão.
Entre eles um estrangeiro, o coronel uruguaio Manuel Cordero, 77.
Enquanto Alemanha e Argentina semeiam o porvir escrutinando o passado, o Brasil eterniza a impunidade dos agentes da ditadura (1964-1985).
Carlos Alberto Brilhante Ustra, coronel do Exército Brasileiro, morreu no ano passado aos 82 anos sem ter sido punido por seus crimes imprescritíveis, embora a Justiça o tenha qualificado formalmente como torturador.
De 1970 a 1974, o torturador Ustra chefiou o maior campo de concentração urbano da ditadura, o Destacamento de Operações de Informações do II Exército.
Lá, em São Paulo, o coronel comandou tortura, assassinatos e desaparecimentos de militantes de esquerda.
Nem as leis da ditadura autorizavam tais crimes.
Há muitos sócios de Ustra no aparato de extermínio que estão vivos.
Deveriam ser julgados como o alemão Reinhold Hanning e o argentino Reynaldo Bignone.
Os dois estrangeiros eram agentes do Estado.
Barbarizaram na condição de funcionários públicos.
Ustra, também.
A impunidade é um convite a tudo de novo outra vez.