Blog do Mario Magalhaes

O festival de hipocrisia que assola o país

Mário Magalhães

Deram-lhe tempo para depor a presidente constitucional – Foto Ricardo Borges/Folhapress

 

Fiz um bate e volta à região serrana do Rio na manhã de ontem. A trabalho e por prazer. Nem entrara no túnel Rebouças quando o rádio informou que o ministro Teori Zavascki afastara Eduardo Cunha da chefia da Câmara e suspendera seu mandato parlamentar.

Sobrevieram declarações de autoridades, políticos, figurões de toda ordem, amigos, inimigos e uma profusão de comentaristas _só faltou o de cuspe à distância. Em comum, celebraram o que interpretam como triunfo da democracia, o chega-pra-lá no ''delinquente'' (assim Cunha é qualificado pelo procurador-geral da República).

Lá na serra, deparei-me com uma foto do Sérgio Porto, homem de imprensa e ideias que assinando Stanislaw Ponte Preta criou na década de 1960 o Febeapá, ''O festival de besteira que assola o país''. A fotografia está guardada com carinho porque o dono da casa era amigão do Sérgio Porto.

Regressei ao Rio ao som da mesma batida no rádio. Ao passear pela internet, aqui na Cinelândia, dei com o tom parecido com o que ouvira mais cedo. Como um ladrão inescrupuloso, assim diziam, feito Cunha poderia comandar a Câmara? O pior era sua condição de um dos primeiros da linha sucessória presidencial. O Estado democrático de direito não poderia conviver com tal aberração.

No comecinho da noite, fui ao cinema ver ''Nise: O coração da loucura'', filme de Roberto Berliner, com Glória Pires de novo exuberante. Era mais trabalho, que também se revelou prazer.

Em casa, peguei algum noticiário na TV, em jogral: Eduardo Cunha não reunia autoridade moral e legal para permanecer onde estava.

Café da manhã, com jornais impressos, mais do mesmo.

Concordei com tudo. Tudinho.

Só não entendi por que bravos combatentes da causa democrática esperaram tanto para se manifestar pela saída imediata do tinhoso.

Ou por que só agora aumentaram os decibéis da bronca.

O pedido de cartão amarelo ou vermelho para o deputado correntista na Suíça havia sido protocolado em dezembro pela Procuradoria-Geral da República.

Desde março Cunha era réu no STF, acusado de corrupção passiva e lavagem de dinheiro.

Todas as provas fundamentais contra ele foram tornadas públicas no ano passado.

Por que aplausos ruidosos agora e silêncio ou discrição antes de 17 de abril?

Foi naquele dia que o deputado presidiu a sessão da Câmara decisiva para o plano de depor a presidente da República que, ao contrário de Eduardo Cunha, não foi denunciada por crime algum.

É seletiva a convicção dita democrática que aceita um ''delinquente'' na cabeça da Câmara, desde que ele se preste a fazer certos serviços, no caso o golpe de Estado com embalagem light.

Há décadas o Brasil não assistia a tanta hipocrisia.

Quem proclama em maio votos pela democracia ficou pianinho antes de 17 de abril.

Sem Eduardo Cunha o impeachment não teria prosperado, como disse o deputado Paulinho da Força e sabem os apoiadores da deposição, mesmo que por motivos sanitários afetem repulsa ao deputado.

A hipocrisia é tamanha que manjadérrimos aliados e correligionários de Eduardo Cunha elogiaram sua retirada de cena, ao menos do proscênio.

O Febeapá foi uma maneira de Sérgio Porto cutucar com humor a ditadura parida em 1964.

Até onde a memória alcança, saíram três volumes.

Em 2016, o festival de hipocrisia que assola o país renderia coleção muito mais parruda.

Ironia destes tempos tormentosos e hipócritas: leio à mesa do café, no ''Globo'', que Eduardo Cunha morou na rua Sérgio Porto.

Rua Sérgio Porto, 171.

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