Blog do Mario Magalhaes

Da direita à esquerda, imprensa pediu cabeça de Getulio Vargas em 1954

Mário Magalhães

Cortejo fúnebre de Getulio na praia do Flamengo, 25.ago.1954 – CPDOC/AnC

 

O ano de 2016 não é o primeiro em que certas trincheiras de esquerda se associam às da direita para pedir a queda de presidente da República eleit@ pelo voto popular e sem culpa comprovada por crime algum. Em 1954, também foi assim.

Nas décadas de 1930 e 1940, Getulio Dornelles Vargas havia sido ditador. Comandou golpe de Estado, aboliu eleições, fechou o Congresso, interditou a Justiça, impôs a censura, flertou com o nazifascismo, entregou para a Gestapo (em parceria com o STF) a alemã-judia-comunista-grávida Olga Benario, manteve uma polícia que torturou (meu personagem Carlos Marighella apanhou por 21 dias consecutivos em 1936) e matou oposicionistas sem piedade. Devido à tradição de impunidade no Brasil, Getulio nunca foi julgado pelos crimes que cometeu contra a democracia e os direitos humanos.

Em agosto de 1954, era diferente. Quase quatro anos antes, o gaúcho havia sido sufragado pelos cidadãos. Pela primeira vez, sua condição de presidente da República tinha o respaldo legal e legítimo das urnas.

Na madrugada de 5 de agosto de 1954, o jornalista e opositor Carlos Lacerda _protagonista do meu próximo livro_ sofreu um atentado a bala. Foi ferido em um pé. O major-aviador Rubens Vaz, que atuava como seu guarda-costas voluntário, foi assassinado pelo pistoleiro.

A ''Tribuna da Imprensa'', jornal de Lacerda, apontou Getulio como o mandante. O jornalista integrava a União Democrática Nacional, agremiação de direita, que logo reivindicou a renúncia do presidente.

O Partido Comunista, então proscrito, também acusou Getulio de ter ordenado a ação em que mataram o major Vaz. ''Vargas responsável pelo covarde crime'', estampou em 10 de agosto a primeira página da ''Imprensa Popular''. Era o diário de esquerda controlado pelo PCB.

O 24 de agosto, dia do suicídio de Getulio, amanheceu com a ''Tribuna da Imprensa'' noticiando e estimulando o cerco para depor o presidente. E com a ''Imprensa Popular'' republicando entrevista de Luiz Carlos Prestes, o líder do PCB, pedindo ''para pôr abaixo o governo Vargas''.

É claro que a campanha da direita foi decisiva nos acontecimentos de 1954. A historiografia, porém, costuma minimizar ou omitir a orientação do PCB, da qual o partido viria a se arrepender. Naquela época, os comunistas propunham luta armada para derrubar o presidente consagrado pelo voto dos brasileiros.

Nunca houve prova de que Getulio tenha encomendado o atentado contra Lacerda, como muito tempo depois daquelas jornadas tempestuosas o jornalista viria a reconhecer (meu livro, a sair em 2017 pela Companhia das Letras, trará novidades relevantes sobre o atentado de 1954 e a convivência e parceria, na maturidade, de Lacerda com arraigados getulistas). A iniciativa contra Lacerda, tudo indica, foi de Gregório Fortunato, chefe da Guarda Pessoal do presidente.

Em 2016, também inexiste prova de que Dilma Rousseff tenha sido autora de crime. O que não impede que forças de esquerda, como fazem as de direita, defendam seu afastamento. Os 54.501.118 votos para Dilma em 2014 seriam ignorados, como os 3.849.040 pró-Getulio em 1950.

O levantamento jornalístico abaixo foi publicado pelo blog nos 60 anos da morte de Getulio Vargas. Atualizei e acrescentei as primeiras páginas da ''Tribuna'', agora disponível na Hemeroteca Digital.

Em 1954, quase toda a imprensa pediu a cabeça de Getulio. Da esquerda à, sobretudo, direita. Deu no que deu.

Eis o post original:

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Existe um livro chamado “Em agosto, Getulio ficou só”. Nunca o li, mas sempre apreciei o título bem bolado.

No próximo dia 24 de agosto, o suicídio do presidente Getulio Dornelles Vargas completa 62 anos. A visita à imprensa da época evidencia que, se dependesse do radicalizado ambiente jornalístico, o gaudério de São Borja não teria mesmo como escapar. Ele foi deposto de madrugada, na forma de uma “licença”. Ao se matar, de manhãzinha, impediu os militares de assumirem diretamente o governo. Com o sacrifício, atrasou o golpe de Estado em dez anos.

Com muitas publicações levando para a internet suas coleções, e a Biblioteca Nacional botando no ar parte de sua hemeroteca, ficou mais fácil consultar os velhos jornais. Eles confirmam que o presidente sufragado pelo voto popular em 1950 estava acossado pela direita, principalmente, mas também pela esquerda.

Além da “Última Hora”, pró-Palácio do Catete, então sede da Presidência, o “Jornal do Brasil” se opôs à iminente virada de mesa institucional. Não deveriam estar sozinhos, como um levantamento mais vasto demonstrará, mas quase.

As primeiras páginas abaixo são dos matutinos, em 24 de agosto de 1954, e dos vespertinos da véspera. Isto é, as derradeiras edições antes do tiro no peito.

Um dos jornais mais panfletários foi o ''Diário Carioca'', que saiu com o minieditorial “Reú, renúncia, rua”. A demissão do presidente seria “exigência da consciência nacional ante a vergonha nacional e internacional a que o governo dos Vargas arrastou o Brasil”:

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Detalhe da primeira página do “Diário Carioca'':

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A ''Tribuna da Imprensa'', vespertino de propriedade de Carlos Lacerda, estava em campanha pela renúncia de Getulio. Na primeira edição de 23 de agosto de 1954, trazia o ultimato de brigadeiros contra o presidente. E uma chamada sobre o chefe da Guarda Pessoal de Getulio: ''Gregório era o verdadeiro presidente da República''. Na segunda, mudou a manchete, para noticiar e estimular o cerco sobre Vargas:

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aaaaaatribuna 2

 

''O Globo'' também deu editorial pedindo a cabeça de Getulio. Ofereceu duas opções: “por um ato de sua livre vontade” ou “sob coação das circunstâncias”. Em caso de derrubada, o Brasil continuaria na condição de “um estado juridicamente constituído”:

 

O ''Diário da Noite'' pertencia à rede do magnata Assis Chateaubriand. Fiel escudeiro de Chatô, o jornalista Austregesilo de Athayde pontificou, em sua coluna: haveria “podridão do governo” e “negociatas do chefe da Guarda Pessoal” do presidente. Aconselhou interferência militar: “Atentem nesse índice a opinião e as Forças Armadas, a fim de ajuizarem corretamente a anarquia moral em que se encontra submerso o país”:

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Na polarização da Guerra Fria, os quatro diários mencionados estavam ao lado dos Estados Unidos. Porém, a “Imprensa Popular” (li em arquivo físico da Universidade Estadual Paulista), pró-União Soviética, também conclamou pela derrubada de Getulio. Na manhã de 24 de agosto, o jornal republicou uma entrevista do principal líder comunista, Luiz Carlos Prestes. Seu partido, então banido, editava a “IP”. Embora denunciasse “os golpistas” em geral, Prestes defendeu “pôr abaixo o governo Vargas”:

 

Os paulistanos ''Folha da Manhã'' e ''Folha da Noite'' noticiaram os movimentos do presidente e as ações dos conspiradores, mas não tomaram posição explícita, pelo menos que eu tenha reparado:

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Como era seu padrão, ''O Estado de S. Paulo'' dedicou a primeira página somente ao noticiário internacional. A cobertura mais relevante da crise brasileira ficou na página abaixo. Em outra, pediu a deposição de Getulio e advertiu: ''Os que defendem a permanência desse homem no governo estão separados da nação por um fosso intransponível'':

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No Rio, o ''Jornal do Brasil'' tinha suas idiossincrasias, reservando quase toda a capa para anúncios de arrumadeiras, copeiras, choferes e jardineiros. Foi a única publicação, entre as consultadas, com a informação da queda de Getulio, mas não da morte. Fechou depois das cinco da manhã. A manchete: “Renunciou o presidente da República”. Não havia renunciado, mas havia fogo sob a fumaça. Em editorial, o “JB” se opôs à deposição, porque inexistia “conhecimentos dos fatos”, sobre o atentado contra Carlos Lacerda no começo do mês. Sem conhecê-los, seria temerário opinar acerca de “quaisquer das soluções de natureza constitucional que as crises imponham”. Jamais se provou que Getulio soubesse do plano contra Lacerda:

 

Na ''Última Hora'', a manchete histórica: “Só morto sairei do Catete!”. No dia seguinte, o jornal estampou: “O presidente cumpriu a palavra: ‘Só morto sairei do Catete!’”:

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São legítimas todas as apreciações sobre Getulio Vargas e seu legado, que conhecemos melhor com a trilogia de fôlego que o jornalista Lira Neto publicou pela Companhia das Letras. Mas o aspecto central em 1954 é o golpe de Estado contra um presidente constitucional.

Getulio não era mais o ditador deplorável dos anos 1930 e 1940. Era um governante eleito pelo povo. Sua derrubada fez mal ao país, que desprestigiou a democracia. E aos trabalhadores, cujas conquistas haviam se acumulado na administração democrática do presidente que saiu da vida para entrar na história.

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