Blog do Mario Magalhaes

Tudo é história: data do golpe é 1º de abril de 1964, e não 31 de março

Mário Magalhães

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''O Jornal'', pró-golpe, 07.abr.1964 – Reprodução Arquivo Nacional

 

Mergulhado em pesquisas para o livro sobre Carlos Lacerda (1914-1977) que preparo para a Companhia das Letras, encontrei no Arquivo Nacional o recorte acima.

É de ''O Jornal'', matutino carioca dos Diários Associados, o conglomerado de Assis Chateaubriand.

Edição de 7 de abril de 1964, conforme anotação manuscrita.

Acabara de ser dado o golpe de Estado contra o presidente João Goulart. ''O Jornal'', como toda a cadeia de publicações de Chatô, apoiou a deposição de Jango.

Chamou o golpe de ''Revolução'', como a ditadura sempre repetiria.

Mas a notícia deixa escapar uma informação interessante: no nascimento da ditadura, o movimento que derrubou Goulart chegou a ser datado corretamente, 1º de abril, pelas trincheiras golpistas.

É isso aí: o golpe de Estado de 1964 ocorreu no Dia da Mentira, e não em 31 de março.

Por conta do aniversário de 52 anos da ação liberticida, o blog reproduz o post abaixo, publicado no cinquentenário do golpe.

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Por que a data do golpe é 1º de abril de 1964, e não 31 de março

Ninguém deveria perder fios de cabelos, colecionar mais rugas e encrencar por conta uma controvérsia que não altera o essencial: em 31 de março ou 1º de abril de 1964, o presidente constitucional João Belchior Marques Goulart foi deposto por um golpe de Estado que fuzilou a democracia e pariu uma ditadura.

A controvérsia não altera o essencial, mas existe.

Algumas versões difundidas recentemente, com o propósito ou não de referendar o dia 31 como “a data”, não encontram lastro nos fatos.

Um eminente historiador afirma que as tropas golpistas do Exército começaram a descer de Minas rumo ao Rio ainda no dia 30 de março de 1964. Falso.

Um jornal sustenta que a queda de Jango ocorreu em 31 de março.

Se a data do golpe permite legítimas interpretações, constitui equívoco grave estabelecer o dia 31 como o da saída do presidente.

Um líder estudantil daqueles tempos escreve que a polícia política atacou dirigentes sindicais, reunidos no Rio, na sede de uma entidade de estivadores, ainda em 30 de março. Errado: foi na tarde de 31.

Os três relatos mencionados conspiram para sacramentar 31 de março como o dia do golpe.

Como se sabe, os golpistas sempre defenderam essa, digamos, tese.

Os opositores da ditadura costumam (ou costumavam) preferir 1º de abril, o Dia da Mentira: os golpistas alegaram que apeavam Goulart do poder para salvar a democracia; acabaram por asfixiar as liberdades por 21 anos.

Ignoremos os interesses dos contendores e nos submetamos aos fatos.

As tropas começaram a se mover de Minas só com o dia claro, em 31 de março.

O general Olímpio Mourão Filho narrou que se recolheu aos seus aposentos, em Juiz de Fora, na noite de 30 de março, enquanto Jango discursava no Automóvel Club do Brasil, no Rio.

Comandante da 4ª Região Militar e da 4ª Divisão de Infantaria, Mourão desencadeou o movimento, junto com o general Carlos Luís Guedes. Seu plano era dar a largada na marcha entre as 4h e as 5h do dia 31.

De manhã, as tropas ainda estavam em Juiz de Fora. Lá, às 7h de 31 de março, o tenente Reynaldo de Biasi Silva Rocha ministrou instrução de combate à baioneta. “Quem quer passar fogo nos comunistas levante o fuzil!”, gritou.

Às 11h30, o chefe do Estado-Maior do Exército, Humberto de Alencar Castello Branco, disse por telefone ao general Guedes, que permanecia em Minas: “A solução é vocês voltarem, porque senão vão ser massacrados”. O general Castello em breve se tornaria marechal e presidente da República.

Ao meio-dia de 31 de março, Jango estava no Rio. No Palácio Laranjeiras, disse que havia “muito boato”, mas nada de concreto, sobre rebelião militar.

Só por volta das 16h15 doze carros do Departamento de Ordem Política e Social pararam em frente ao edifício da Federação Nacional dos Estivadores. Tentaram prender os dirigentes do Comando Geral dos Trabalhadores, mas estes foram socorridos por soldados da Aeronáutica fiéis a Jango.

Até pouco depois do meio-dia de 1º de abril, João Goulart não arredava pé do Palácio Laranjeiras, local dos despachos presidenciais no Rio (a capital já se transferira para Brasília). Como poderia ter sido derrubado na véspera, 31 de março? Por volta das 13h, na 3ª Zona Aérea, Jango embarcou para Brasília.

Só na madrugada de 1º de abril as tropas que decidiriam a parada, as do II Exército, de São Paulo, começaram a se preparar para marchar sobre o Rio. Mas ainda esperavam, como escreveu Elio Gaspari em “A ditadura envergonhada”: “Ao amanhecer do dia 1º de abril Kruel persistia na posição de emparedar Jango sem depô-lo”. O general Amaury Kruel comandava o II Exército.

Sem a adesão de Kruel a deposição do presidente não prosperaria.

Em 1º de abril, prosseguiam em seus postos no Rio oficiais legalistas, submetidos ao comandante-supremo das Forças Armadas, o presidente Jango. Era o caso do general Oromar Osório, comandante da 1ª Região Militar (logo ele voaria para Porto Alegre) e do brigadeiro Francisco Teixeira, comandante da 3ª Zona Aérea.

Só em 1º de abril o Forte de Copacabana passou às mãos dos golpistas. Ao seu lado, o QG da Artilharia de Costa foi tomado às 11h30.

Preocupados com o fato de que golpearam no 1º de abril, oficiais mentiram sobre a data da virada de mesa no Forte de Copacabana, datando 31 num relatório. Assinalou Gaspari: “Na realidade, os acontecimentos se passaram exatamente um dia depois, 27 horas depois de Mourão e sete depois de Kruel”.

Em Minas, muitos golpistas cascateavam ter marchado no dia 31, Gaspari observou: “Com o tempo tanto a adesão do coronel Raymundo [Ferreira de Souza] como a dos oficiais do 1º BC passaram a ser assinaladas como estandartes de uma marcha triunfal e a ser antecipada para a noite do dia 31 pela historiografia do êxito. Apesar das conversas na noite anterior, [o general Antonio Carlos] Muricy só recebeu os pelotões do 1º BC por volta de meia-noite, e a adesão do comandante do 1º RI só se consumou às sete horas da manhã seguinte [1º de abril]”.

Na Cinelândia, à qual uma multidão acorreu para protestar a favor de Jango e da Constituição, a batalha ocorreu na tarde de 1º de abril, e não na véspera. Do prédio do Clube Militar, golpistas abriram fogo, ferindo e matando manifestantes.

O marco da queda de João Goulart é sua partida de Brasília, na noite de 1º de abril de 1964. Ele aterrissou em Porto Alegre de madrugada do dia 2 e resolveu não resistir. Na mesma madrugada, era empossado presidente o deputado golpista Ranieri Mazzilli, que presidia a Câmara.

Fonte insuspeita, o velho general Cordeiro de Farias anotou: “A verdade _é triste dizer_ é que o Exército dormiu janguista no dia 31. E acordou revolucionário no dia 1º”.

Os movimentos em Minas iniciaram mesmo no dia 31 de março. E só. Como o Exército que dormira janguista poderia ter golpeado antes de o sono chegar?

No Rio, onde se concentravam os contingentes das três Forças Armadas, pode-se considerar que o golpe se consumou pelas 16h de 1º de abril. Mais ou menos naquele horário, os tanques do Exército que protegiam o Palácio Laranjeiras o abandonaram e estacionaram centenas de metros além. Passaram a defender o Palácio Guanabara, onde estava o governador Carlos Lacerda, o principal arauto civil do golpe.

A data do golpe é 1º de abril de 1964. Os fatos são claros.

Mas, reitero, não valem desinteligências acaloradas.

Na véspera ou no dia seguinte, aconteceu o que, para o bem do Brasil, seria melhor não ter acontecido.

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