No país de ditas instituições fortes, o voto popular é uma das mais frágeis
Mário Magalhães
O Brasil conflagrado especula cenários com o possível impeachment de Dilma Rousseff pelo Congresso.
Os partidários do “fora, Dilma” alardeiam virtudes de eventual governo Michel Temer com aliados como José Serra e Aécio Neves (costumam silenciar sobre Eduardo Cunha, Paulinho da Força, Moreira Franco e o resto da turma).
Os que se opõem ao afastamento da presidente preferem enfatizar o que viria a ser a presença da parceria mais, digamos, barra-pesada.
Ainda que separados no fundamental, a opinião sobre o sai ou fica, ambas as trincheiras se identificam ao valorizar o dia seguinte a um hipotético cartão vermelho. São contra ou a favor, em boa parte, devido à coalização que substituiria a governante constitucional.
Não que tais argumentos e preocupações careçam de legitimidade e relevância. Mas de algum modo eles minimizam o aspecto central da controvérsia, que é a soberania do voto popular.
Desde o fim da ditadura, em 1985, e a promulgação da Constituição, três anos mais tarde, bem-pensantes têm proclamado o que seriam instituições fortes do Estado Democrático de Direito. Há controvérsia.
O que parecia perdido no passado era o desprestígio de uma das mais caras instituições da democracia, o voto popular. O conceito segundo o qual a participação cidadã em eleições decide quem governará, por mais assimétricas que sejam as oportunidades de se candidatar e de se eleger. Hoje, o prestígio do voto popular se assemelha ao dos técnicos de futebol declarados “prestigiados” às vésperas do cadafalso. É uma instituição frágil.
Paladinos do impeachment costumam recorrer à lembrança de Fernando Collor de Mello como exemplo de afastamento de presidente sem ruptura constitucional. Em 1992, contudo, foi diferente. Colheu-se prova cabal, acima de dúvida, de que Collor ferira a lei.
Em 2016, Dilma Rousseff não é suspeita (condição declarada pelo indiciamento) nem acusada (pela denúncia) de ter roubado na gatunagem criminosa na Petrobras. Expulsá-la do Planalto equivaleria a estuprar a soberania do voto popular. A presidente foi escolhida em 2014 por 54.501.118 brasileiros. Com 3,28 pontos percentuais de vantagem sobre Aécio Neves, que recebeu 3.459.963 votos a menos.
E se surgir prova de que Dilma tenha cometido crime? Seria outro papo. Autor de crime deve ser processado e punido na forma escrupulosa da lei.
A presidente não amarga miseráveis índices de aprovação? Põe miseráveis nisso. No entanto, na democracia, o que elege governante não é pesquisa de opinião, e sim o voto popular.
Conspira-se para depor a presidente legitimada pelo voto, a fim de entregar a administração ao vice, Michel Temer, que teria um sufrágio em cada cem na eleição presidencial (vide Datafolha). O mais influente agente do impeachment, Eduardo Cunha, é suspeito e acusado, ao contrário de Dilma, por uma vastidão de crimes. O político que se tornou o pregador maior da moralidade, Aécio Neves, é mais citado na Operação Lava Jato que o George Clooney pelas minhas amigas.
Ontem e hoje
A Fiesp promove campanha pelo impeachment. De fato, eis um movimento importante. Só que não é novidade: em 1964, a entidade jogou no time do golpe de Estado.
O time era numeroso. Na madrugada de 2 de abril daquele ano, o presidente do Supremo Tribunal Federal participou da posse farsesca do presidente da República interino, Ranieri Mazzilli, o capo da Câmara que roubou o lugar do presidente constitucional João Goulart.
Ignoro aspirações golpistas na atual composição do STF, porém soa estranho o ativismo político do ministro Gilmar Mendes. Pior ainda, o estilo do ministro parece fazer escola.
Há muita gente conspirando contra a soberania do voto popular. Consciente ou não, reedita episódios de outrora.
Um dos pretextos para a derrubada de Jango foi a alegada corrupção que campearia em seu governo. O próprio presidente seria larápio. Semanas depois do golpe, o ex-presidente Juscelino Kubitschek também foi chamado de ladrão. Para não falar no político mais detestado pela nova ordem, o deputado cassado Leonel Brizola. Todos foram investigados, tiveram seus negócios devassados, e o patrimônio, esquadrinhado. Não conseguiram comprovar uma só falcatrua do trio. Noutras palavras, concederam-lhes atestado de honestidade.
Aclamado pelos golpistas como “Revolução”, o golpe teve como um dos motivos propagandeados o que seria a intenção criminosa de Jango de suprimir a eleição direta para presidente prevista para outubro de 1965.
Pois três meses depois de tomar o poder a ditadura adiou a eleição e prorrogou o mandato do marechal Castello Branco, que não recebera um só voto do povo para ser presidente. E um ano e meio após o golpe acabaram de vez com a eleição direta.
A história da República é a crônica de maquinações contra a soberania ou expressão do voto popular. O que não falta é desculpa. Ao fundo, ecoa a máxima de Pelé: o povo não sabe votar.
Em 1965, testemunharam protagonistas e atestam documentos, a eleição direta foi sepultada porque os militares e civis da ditadura sabiam que perderiam nas urnas. O governo do ditador Castello era muitíssimo impopular.
Em 2016, o PMDB pretende tomar o Planalto sem se submeter a voto. No voto, dificilmente o partido chegaria lá. Ao menos com Michel Temer e seu 1%.
Ontem e hoje, para alcançar certos fins, tentam sufocar a soberania do voto popular.
Na democracia, quem está desgostoso com governos tem sempre boa chance de botar para fora os governantes e seus correligionários: a próxima eleição.
No caso, em 2018.