Torcida contamina cobertura ‘jornalística’ sobre versão de Delcídio
Mário Magalhães
A sexta-feira amanheceu com agentes da Polícia Federal na porta do prédio onde Lula vive, em São Bernardo. O ex-presidente foi levado à força para depor, na 24ª etapa da Lava Jato.
O operação ocorre na semana da saída de José Eduardo Cardozo do Ministério da Justiça e um dia depois de a revista ''Isto É'' divulgar o que seriam os termos de acordo do senador Delcídio do Amaral para delação dita premiada, a ser sacramentada no Supremo Tribunal Federal.
O documento com a alegada versão de Delcídio, devastadora para Lula e a presidente Dilma Rousseff, serviu de matéria-prima para a mais intensa bateria de ataques sofridos pelo ex-presidente na sua trajetória política.
A cobertura ''jornalística'' do episódio autoriza o emprego das aspas.
A propaganda substituiu o jornalismo, e a opinião sufocou a informação.
O que é versão a ser cotejada com os fatos virou mentiralhada vingativa ou, no jornalismo hegemônico, a proclamação da verdade suprema.
A reação ao aparente relato de Delcídio depende mais da torcida do que da verificação dos fatos.
O ceticismo, qualidade recomendável a jornalistas, deu lugar ao espírito de juiz de direito. Menos se informa e mais se sentencia.
O que mais chamou a atenção foi o sumiço, não generalizado, mas expressivo, da memória jornalística recente. Ou seja, dos fatos que levaram Delcídio à prisão. Em relação a Lula há suspeitas, de acordo com a investigação oficial. No caso do senador, muito mais. Ouvimos todos uma gravação demolidora, com o parlamentar petista (agora ''suspenso'' do seu partido) conspirando para a fuga ao exterior de notório bandido, Nestor Cerveró.
A versão de Delcídio tem de ser interpretada nesse contexto. O senador acabou em cana, e estava preso quando foram noticiadas críticas de Lula a ele. Os acordos para delação têm ocorrido em torno de informações ou alegações que indiquem eventual crime cometido pelo ex-presidente. Lula, está claro, é o alvo principal da Lava Jato. Com o propósito de ser solto, o antigo líder do governo Dilma teria motivos para contar verdades ou inverdades. Existe um contexto no qual se dá o suposto compromisso que presenteou Delcídio do Amaral com a liberdade.
O que o jornalismo tem a dizer sobre isso?
Num córner da imprensa, a desqualificação absoluta do relato do senador.
Ora, se Delcídio é quem é _a gravação do plano para a fuga é eloquente_, não significa que sua versão seja mentirosa, ao menos não na íntegra. Gente da laia dele, no passado, já compartilhou verdades. Se para a Lava Jato é indispensável checar se as denúncias se sustentam, para o jornalismo, também. Só se saberá se o que Delcídio falou é cascata ou não depois de apuração _de preferência, autônoma, e não mero eco do que a Lava Jato alardeia.
Noutro córner, muito mais potente, assistiu-se à adoção da versão de Delcídio como se fosse a revelação inescrupulosa do que aconteceu. Escrúpulos, a gravação comprova, não são o forte do senador. Só na dramaturgia vilões, de uma hora para outra, viram mocinhos. O que seria uma minuta da delação serviu de combustível para ofensiva ruidosa contra Lula e Dilma. A impressão é de se ouvir: se o que o se diz, mesmo na boca de delinquente, se presta ao que queremos, ''às favas com os escrúpulos'' (copirraite Jarbas Passarinho, 1968). O que boa parte dos meios de comunicação quer? O impeachment de Dilma e a proibição de Lula disputar a próxima eleição presidencial, não nesta ordem.
A delação de Delcídio do Amaral traz muito mais perguntas do que respostas.
Para certo jornalismo, contudo, parece inexistir dúvida ou pergunta relevante. Mais ainda, vestem Delcídio com traje de herói.
Novidade?
Não. Já se assistiu à partidarização radical da imprensa em momentos dramáticos da história nacional, como em 1954 e 1964.
É uma pena que, já no século 21, o jornalismo deixe de oferecer equilíbrio e, em condições semelhantes de exposição, olhares distintos sobre fatos e ideias.
Lavagem cerebral não combina com jornalismo. Com propaganda, sim.