O banquinho das ex-escravas sexuais
Mário Magalhães
Ainda não sei se são dignos os termos do acordo, mas as agências informam que o Japão pediu desculpas às sul-coreanas escravizadas sexualmente durante a Segunda Guerra (leia aqui).
O que sei é que esta é uma história que deve ser contada de geração em geração.
Contada para que não se repita.
Em 2002, estive com algumas sobreviventes em Seul.
Assim contei a história:
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O banquinho das ex-escravas sexuais
Vendo essas mulheres assim de perto, ao vivo, de carne e osso, custa-se a acreditar que tudo tenha se passado como se passou. E tudo aconteceu exatamente como se sabe hoje. Depoimentos são centenas. Fotografias documentam. Organismos multilaterais, como a Comissão sobre os Direitos Humanos das Nações Unidas, escarafuncharam até reconstituir as passagens mais sórdidas. O vínculo supremo com o passado é a memória destas octogenárias e septuagenárias. O que para alguns parece remoto, para elas foi ontem, quando muito, anteontem. Não cicatrizou.
É pontualmente meio-dia de uma quarta-feira no centro de Seul, e o sol de verão incendeia a primavera. Sentadas em banquinhos, uma dezena de mulheres se posta na calçada defronte à embaixada do Japão. Diante delas, uma tropa de policiais coreanos, com idade para serem seus netos ou bisnetos, contempla-as expondo cassetetes de dimensões pornográficas e escudos de batalhão de choque. Começa a 511ª manifestação semanal das ex-escravas sexuais.
São sobreviventes. De 1932 a 45, o Exército Imperial Japonês recrutou à força 200 mil mulheres para servirem sexualmente aos seus soldados e oficiais nos fronts asiáticos. Coreanas compunham a maioria, pois ficava mais fácil. Em 1910, o Japão anexara a Coreia na marra. Sairia corrido em 1945. Em 1992, contaram apenas trezentas anciãs vivas.
Com as mulheres em silêncio, sentadas em seus banquinhos, integrantes de um movimento de apoio à punição de criminosos de guerra narram ao microfone coisas do passado. De escravas que estão ali, que não estão, que morreram. Chung Seo-woon foi arrastada para a Indonésia. Contaria não ter entendido o que um médico militar japonês pretendeu ao lhe penetrar uma barra de ferro quente. Descobriu que fora uma das 3.000 esterilizadas em Jacarta. De segunda a sexta, suportava cinquenta militares por dia. Sábado e domingo, cem. Nunca pôde ter filhos.
Chong Ok-sun foi carregada aos treze anos. Resistiu, e defloraram-na com um cassetete. Viu uma amiga coreana reclamar e ter a cabeça arrancada com uma espada. Uma escrava foi retalhada. Chong nunca mais teve intercurso, impedido pela dor e o trauma.
Cessam os discursos. Os oitenta presentes, dos quais dezesseis freiras católicas, entoam cânticos e gritam palavras de ordem, de punhos cerrados. Levanta do banquinho a única ex-escrava a discursar hoje: Yoon Sun-man, de 83 anos. Recomeça, de costas para as companheiras e de frente para a representação diplomática, a reviver sua saga.
Boa parte das mais de 100 mil coreanas foi sequestrada quando tinha de catorze a dezoito anos. O Exército Imperial Japonês temia a proliferação de doenças venéreas. Assim, ansiava por virgens. Não adiantava mentir, falar em marido. Os cabelos denunciavam a condição conjugal. Casada penteava-se de um jeito, solteira de outro.
Em 1932, o Japão passou a construir o que foi designado pelo eufemismo “estações de conforto”. Nelas estariam as “comfort women”, expressão em inglês que significa mulheres que provêm conforto. A primeira estação foi erigida em Shangai, na China. Seguiram-se as demais, espalhadas por toda a Ásia, porém não na Coreia. Por isso, desavisadas, coreanas aceitavam convites para trabalhar em fábricas longínquas, aliviando em uma boca famílias famélicas. Em vez de ir para fábricas, eram despejadas nessa espécie pouco alardeada de campos de concentração, as ditas estações de conforto.
Não se tratava de prostíbulos nem de prostitutas. Não havia negócio, nem nada elas recebiam para “confortar” os militares. Submetidas a trabalho forçado, não podiam sair. Era escravidão. Apanhadas, as que tentaram fugir foram executadas. Numa só estação, em 1945, os japoneses assassinaram setenta escravas, horas antes do resgate por tropas dos Estados Unidos. Várias se suicidaram, ainda presas nas estações ou, nas décadas seguintes, aprisionadas pela memória.
Agora, de frente para a embaixada, Yoon Sun-man desfila as reivindicações essenciais: que o Japão peça desculpas, puna os responsáveis ainda vivos, reconheça que houve crimes de guerra, compense as vítimas e corrija os livros que escamoteiam a tragédia das “comfort women”. O governo de Tóquio afirma que não pode responder com base nas leis sobre guerra aprovadas em 1949, em Genebra. E que os acordos posteriores à Segunda Guerra Mundial (1939-45) zeraram o jogo.
Para muitas sobreviventes, o tempo não passou. Suas histórias permanecem tabu até na Coreia. Após a guerra, elas eram tidas como vagabundas dissimuladas. Ocultavam o passado. Na manifestação, uma delas encobre o rosto com uma folha de papel. Quatro compartilham uma casa no interior. Até tempos atrás, faltava coragem para reaparecer e exigir o que consideram seus direitos. O primeiro protesto ocorreu em janeiro de 1992, numa quarta-feira. Não pararam mais. Sempre ao meio-dia.
Yoon Sun-man, escravizada em 1941, conclui o discurso. Ao meio-dia e meia, nem um minuto a mais ou a menos, elas partem com os banquinhos. Kim Sun-duk, de 79 anos, diz ao estrangeiro persistir porque injustiças devem ser punidas. E Yoon Sun-man, numa última frase, se vira e acrescenta: “Eu não posso morrer antes de ouvir desculpas.”
(MM, “Folha de S. Paulo'', 29.mai.2002)