Muricy, brasileiros esnobados na Europa e formação continuada dos técnicos
Mário Magalhães
Voltando à vaca quente: o futebol.
Tempos atrás, Mário Sérgio e Rodrigo Bueno tiveram uma desinteligência na Fox Sports. Os comentaristas divergiram sobre a qualidade dos técnicos brasileiros em comparação com os que comandam os clubes mais fortes da Europa. O ex-jogador argumentou que os ''nossos'' nada deviam aos ''deles''. O jornalista se opôs, lastreado pelo fato de que a nata dos treinadores nacionais é esnobada onde hoje se joga o melhor futebol.
Mais tarde, numa transmissão, Mário Sérgio falou, aparentemente sem ironia: “Ainda dizem que os treinadores europeus são melhores que os nossos. Eu nunca vi um treinador europeu fazer uma linha de impedimento tão perfeita quanto essa. É nosso, e a gente não dá valor”.
No Twitter, Rodrigo Bueno não deixou a bola quicando: “Só quem viu a linha de impedimento de um tal Rinus Michels (técnico da Holanda na Copa de 1974) sabe o que é”.
Deu até pena do Mário Sérgio, tão ingrata sua causa. Até agora, causa perdida.
Técnicos argentinos e chilenos vão expandindo seu espaço no meio top da Europa, enquanto aos brasileiros as portas permanecem fechadas.
Vanderlei Luxemburgo malogrou no Real Madrid, e Luiz Felipe Scolari, no Chelsea. Durou pouco, e ficamos por aí.
Ao menos com Luxa, a ignorância sobre o idioma falado por boa parte do vestiário foi alegada como um dos motivos do fracasso. Não creio que o problema tenha sido o assassinato inclemente do castelhano, embora seja importante se comunicar minimamente. Não é à toa que Pep Guardiola se aplicou e ainda se aplica para progredir no domínio do alemão.
Tenho me lembrado da altercação na Fox e dos insucessos de Luxa e Felipão ao ler e ouvir os treineiros brasileiros trombeteando seus ''estágios'' e ''reciclagens'' em agremiações europeias.
Na maioria das vezes, não passa de papo furado. Eles fazem pouco mais que uma ''visita guiada'' de alguns dias, e olhe lá, pelos departamentos dos clubes, cujas administrações são mais profissionais do que as daqui.
Quem quiser tirar a prova dos nove pode perguntar: 1) assistiu a algum treino do time principal?; assistiu a uma palestra, ou conversou demoradamente, do técnico-chefe, do preparador físico-chefe e do chefe da gestão do futebol?
Ok, peguei pesado. Fico só numa pergunta: teve a oportunidade de ver um treinamento de verdade, não recreação, da equipe de cima?
Não vale responder com selfie com técnico famoso…
A insistência de treinadores brasileiros sem emprego em divulgar os tais ''estágios'' confirma que a ideia dominante no Brasil é que a defasagem castiga os nossos técnicos. Essa ideia é correta.
Daniel Alves reconheceu, de modo constrangedor para Dunga, o abismo entre os treinos do Barcelona e os da seleção brasileira.
Não é questão de tempo de treino, pois do contrário quem treinasse de manhã, de tarde e de noite seria imbatível.
O método não é baseado em tempo, mas em intensidade. Aplicação máxima e concentração (''foco'', diria um consultor) na reprodução de situações de jogo. Ensaiando sistema (a disposição básica dos jogadores em campo) e suas variações, mais tática (a organização de um time para atacar e defender).
Isso é o futebol contemporâneo.
Uma hipótese para o atraso dos brasileiros é a acomodação decorrente das necessidades locais. Noutras palavras, para vencer no Brasil não é preciso jogar com muito mais intensidade (vejam a diferença que faz o Corinthians atacar com fome e fungar no cangote adversário para recuperar a pelota).
O combustível da evolução humana foi e é a necessidade. Para triunfar no competitivo futebol europeu, com os maiores craques do planeta (inclusive brasileiros), é necessário avançar.
Observemos Guardiola e José Mourinho. O primeiro não inventou o futebol-total, nem o segundo o ferrolho. O que há poucos anos testemunhamos no Barcelona de um e na Inter de outro foi o aprimoramento obsessivo daquelas duas maneiras de jogar. Era a necessidade, temperada pelo futebol ao gosto de cada um.
Aqui, faltou aggiornamento, atualização. Tostão volta e meia recorda que, em 1970, Zagallo ministrava excelentes treinos, muito modernos para a época. O problema é que, em 1998, eles continuavam iguais.
Sem comparar os técnicos, eis outro exemplo. No São Paulo inesquecível, Telê Santana gastava a maior parte das jornadas em coletivos. À mesma altura, Parreira dedicava-se na seleção aos treinos táticos. Nestes, preparava as ações defensivas num período, as ofensivas noutro. Nos coletivos, azeitava a transição para o ataque e a recomposição da defesa. Os treinos de Parreira eram mais intensos.
Fomos ficando para trás. Nem sempre foi assim. Não é de Guardiola a descoberta do valor da posse de bola. Telê já a pregava. Cláudio Coutinho sustentava que um time de futebol deve manter a bola com a mesma constância de um de basquete (esqueçam 1978, pois aquela Copa, em que o grande Coutinho errou demais, não o honra).
A maioria dos técnicos nacionais carece da mesma qualidade escassa em gente de outras profissões, como o jornalismo: formação continuada.
Não basta ''ter aprendido'' para seguir em frente. É indispensável o conceito de formação continuada, de descobrir e se aprimorar permanentemente. Caso contrário, perde-se o bonde.
Tite é bom exemplo: melhorou, melhora.
Luxemburgo, mau: ficou em algum lugar do passado.
Mais do que nos ditos ''estágios'', os treinadores que têm caixa para isso, e muitos têm, deveriam investir em períodos sabáticos, com plano não de dias, mas de meses ou um ano de mergulho no futebol mais competitivo.
Caso contrário, não verão o tempo passar na janela. Como os jornalistas que fazem mi-mi-mi para treinos secretos, sem saber que os clubes europeus mais poderosos agem assim. Como a seleção alemã campeã mundial. Adotam tal procedimento porque o treino não é um bate-bola malemolente. Mas o ensaio da fértil combinação eficiência no conhecido + eficiência maior ainda nas surpresas.
Reitero, intensidade é a ideia chave.
E não fetiches como o estilo comum a todas as categorias de um clube. Se numa faixa etária conta-se com um monte de baixotes bons de bola, jogarei de um jeito. Noutra, com boleiros maiores e menos técnicos, impõe-se a adaptação. Nada que impeça prestigiar em qualquer cenário conceitos como a posse de bola. Mas o investimento em contra-ataques e jogo aéreo vai variar conforme o elenco disponível.
O melhor técnico é o capaz de identificar vantagens e desvantagens nos indivíduos com quem trabalha para criar o melhor resultado coletivo possível.
E Muricy Ramalho com tudo isso?
Não dou maior valor aos dias que ele passou no Barcelona.
E sim ao tempo inteiro em que ficou parado e, espero, tenha pensado e estudado o futebol.
E à experiência em clubes mais estruturados onde trabalhou.
Admiro sua insaciável vontade de vencer.
Com Muricy, tomara, o 2016 do Flamengo não será igual ao ano que passou.