‘Às favas todos os escrúpulos de consciência’
Mário Magalhães
Nestes dias de ódio e desatino, às vezes a rapaziada derrapa na história e malha quem não merece. Tome-se o exemplo de Hélio Bicudo, signatário do pedido de impeachment de Dilma Rousseff. Justa ou injusta, a proposição não apaga os relevantes e valentes serviços prestados à nação pelo antigo promotor público. Sem ele, a iniciativa pelo afastamento da presidente andaria de qualquer maneira. Mas talvez sem Bicudo o esquadrão da morte jamais tivesse sido enfrentado como foi, nos anos tormentosos da ditadura. Agora o velho combatente se alia a quem, no passado, esteve em trincheiras opostas. Gente como Jair Bolsonaro. É seu direito. Sua façanha e seu destemor estão gravados na memória. Ninguém tasca.
Michel Temer é caso diferente. Só se assemelha a Bicudo no ressentimento. Um filho do ex-petista escreveu um relato pungente sobre como o rancor conduziu o pai à pregação contrária à soberania das urnas. Acontece, cada um com os seus fantasmas, calos e cotovelos. Temer nunca foi grande. Sua grandeza de estadista é miragem pincelada por vários pintores. Entre eles, jornalistas que se beneficiaram por décadas de informações sopradas pelo atual vice. De correligionários seus, não precisa nem falar. Os petistas não escapam, em seu empenho enganador para edulcorar a influência do PMDB no governo.
O tamanho de Michel Temer é o expresso na mensagem a Dilma. Ele se queixa dos carguinhos e cargões que seus compadres perderam. O estadista amuado por vaguinhas no governo? Surpresa? Ora, que virtudes são compatíveis com o presidente nacional do PMDB? Se sempre se considerou um vice decorativo, e isso o chateava, por que topou participar da dobradinha eleitoral em 2014? Para manter os amigos nas altas esferas? Se quer despachar no Planalto, que batalhe pelo voto popular em 2018.
Mas seu manifesto _carta é eufemismo_ é muito mais do que um pote até aqui de mágoas. O ressentido maquinou para que a bomba estourasse no dia em que a Câmara escalaria a comissão do impeachment. E em que a Comissão de Ética deveria enfim dar sinal verde ou vermelho ao andamento do processo de cassação de Eduardo Cunha. Deu no que deu.
Temer conspira pela deposição da presidente constitucional. Como inexistem informações sobre conta secreta dela no exterior, criou-se o pretexto das tais pedaladas fiscais. Quem assinou algumas delas? Michel Temer no exercício da Presidência. Assim como governantes anteriores tinham feito a mesma coisa. O vice atua para salvar Eduardo Cunha, o que vale por uma síntese. Grassa a hipocrisia.
Ou não é hipocrisia trombetear o ''fora, Dilma'' em nome do cerco à corrupção e entregar o leme do golpe ao deputado que, informam as autoridades suíças e o Ministério Público brasileiro, mantém depósitos não declarados em paraíso fiscal? FHC e Lula podiam pedalar, e de repente Dilma não pode. Delcídio do Amaral roubar na era PT é um vexame, e danem-se os tempos de FHC (o senador já embolsava o alheio, entregou Nestor Cerveró).
A cara da pujante escalada do impeachment, contudo, não é a da trajetória honrada de Hélio Bicudo nem a da pequenez de Michel Temer: dada a truculência, é a de Eduardo Cunha.
Desde o pronunciamento dos cidadãos em outubro do ano passado ele trama pela derrubada da presidente. Sobretudo depois que o PT bateu chapa na disputa pela cabeça da Câmara. A sabotagem da votação de medidas econômicas contribui para paralisar o país.
A abertura do processo de impeachment foi vingança decorrente da decisão de deputados petistas votarem pelo prosseguimento da ação contra Cunha. Por mais esperta que seja a lábia diversionista, eis a real: o impeachment progride a partir de ato de Eduardo Cunha, o correntista, na guerra para não ser investigado e julgado por seus pares. Há pecado de nascença.
Não sou jurista nem especialista em regimento do Congresso. Mas observo contrastes. Na decisão do Senado a respeito da prisão de Delcídio do Amaral, o voto foi aberto. Para escolher a comissão do impeachment na Câmara, fechado, o que não tem base legal, de acordo com Ayres Britto, ex-ministro do STF. O voto oculto impede que os eleitores monitorem o desempenho dos seus representantes. A pressão do Executivo, o toma-lá-dá-cá, é um risco. Mas cabe aos retaliados denunciar vendetas imorais.
A Comissão de Ética adiou pela quinta vez a deliberação sobre Cunha. Lá, os partidários do chefão vão falando, falando, falando, até que termina o horário, e a sessão é encerrada sem nada definir. No plenário, aconteceu o contrário. Cunha barrou deputados que queriam discursar antes da votação da comissão do impeachment. Ordenou que desligassem o áudio. Microfone fechado, simbolizando tempos de liberdade ferida.
A verdade é dura, e não há malabarismo retórico que a esconda: quem está com o impeachment está com Eduardo Cunha e parceiros dele como Bolsonaro, Paulinho e Feliciano. Só um mentecapto sustentaria que todos pró-afastamento de Dilma advogam o mesmo programa primitivo para o Brasil. Mas que todos estão abraçados com Cunha, em torno da bandeira do impeachment, estão.
Com a verborragia do ódio, Eduardo Cunha não é somente o arauto maior da ruptura da legalidade. Ele defende ideias sombrias sobre a autonomia das mulheres e a condição de família. Não é uma agenda de retrocesso a 1954 e 1964, e sim à Idade Média. Não temos mais fogueiras, mas tais intromissões na vida alheia _como o Estado não reconhecer uma família como família_ também constituem violência que queima as consciências de bem.
Esses pitacos sobre o impeachment não eliminam a avaliação sobre o péssimo governo Dilma reloaded. A presidente abandonou a base social que a escolheu, e agora se vê cercada por quem não votou nela em outubro. O manifesto de Temer reforça a impressão de inépcia política de Dilma Rousseff. Se alijar o vice de um encontro com autoridade estrangeira pode magoá-lo, por que não levá-lo? A segunda administração é desastrosa. Mas cabe aos cidadãos se pronunciarem, em 2018.
Pior que uma governante ruim eleita pelo povo é um governante, qualquer um, imposto contra o voto. A oposição venezuelana apostou no golpismo e se deu mal. Ao se submeter às urnas, aplicou um chocolate histórico no chavismo. A oposição argentina construiu um programa e um candidato contra Cristina Kirchner. Triunfo incontestável. A oposição brasileira quer ganhar no tapetão.
Não são Dilma e seu triste governo que estão em jogo, mas conquistas democráticas de décadas. Presidente se elege no voto.
O próximo protesto anti-Dilma está marcado para 13 de dezembro. Na mesma data, 47 anos atrás, a ditadura enfiou o AI-5 goela abaixo. Na reunião do Conselho de Segurança Nacional que abençoou o ato liberticida, o coronel Jarbas Passarinho, ministro do Trabalho, exaltou-se: ''Às favas, senhor presidente, neste momento, todos os escrúpulos de consciência''.
Ao testemunhar ladainhas em nome da ''democracia'', tendo ao lado Eduardo Cunha, a impressão é que Passarinho fez escola.