Blog do Mario Magalhaes

Chanchada psicodélica, ‘Chatô’ eviscera o país da Dercy, não do Shakespeare

Mário Magalhães

 

Em 14 de dezembro de 1968, um dia depois da decretação do AI-5, o jornalista Carlos Lacerda (1914-1977) foi preso no Rio. Ex-governador da Guanabara, ex-deputado federal, ex-vereador, havia ido em cana pela primeira vez em 1933. Nos 35 anos seguintes, o mundo dera muitas voltas, e Lacerda mais ainda. Ele começou uma greve de fome que o enfraqueceu, persistia na determinação de não comer, até que levou uma dura de um irmão sagaz: o grevista de fome estava querendo fazer Shakespeare no país da Dercy Gonçalves.

É a terra da atriz brasileira, e não do bardo inglês, que o agora cineasta Guilherme Fontes eviscera em ''Chatô: O rei do Brasil''. Não se trata de condição geográfica, mas existencial. O filme é baseado na biografia homônima escrita por Fernando Morais, obra-prima da literatura de não ficção, editada pela Companhia das Letras. Tinha tudo, supunha eu, para dar errado, tamanha a turbulência que afetou a produção. Resultou numa brilhante chanchada psicodélica, reconstituindo alegoricamente a vida do umbuzeirense Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Mello (1892-1968) com o tom e a batida do protagonista.

Ignoro se o diretor fez bom ou mau uso do dinheiro público, se é cabra decente ou indecente, honesto ou ladrão. Isso quem dirá é a Justiça, além de palpiteiros que se pronunciam de ouvir falar. Sei é que a saga de Guilherme Fontes em quase duas décadas para levar às telas seu filmaço, entre os melhores brasileiros do século 21, vale outro filme.

E o filme em cartaz vale prêmios de direção, fotografia, trilha sonora, roteiro, direção de arte, figurino, montagem e, não menos importante, interpretação (no mínimo para Marco Ricca, exuberante na pele do protagonista, e Andréa Beltrão, que vive a beldade disputada por Chateaubriand e Getulio Vargas).

Assisti a ''Chatô'' no sábado, cinema lotado na sessão das quatro da tarde aqui no Rio. Muita gente com pinta de ter lido o livro, se é que tal pinta existe. Mas na poltrona ao lado se sentou uma senhora que disse ter ido ver ''Chato'', sem acento. Culpa, em parte, do cartaz com circunflexo macambúzio.

Chatô, ou Doutor Assis, como era chamado, nada tinha de chato. Mandou e desmandou no Brasil. Até 1965, foi o mais influente empresário de comunicação, status que perdeu para Roberto Marinho. Por capricho, o magnata da mídia elegeu-se senador e cavou uma sinecura de embaixador em Londres. Em clima carnavalesco, o filme evoca as principais façanhas e perrengues de sua história. Pelo início, exibe o delírio de antropofagia canibal que abre a biografia de Fernando Morais. Mantém, até o fim, o espírito antropofágico cultural bem brasileiro.

''Chatô'' é uma chanchada porque é engraçado e burlesco quase sempre. A vida do personagem principal é contada num julgamento farsesco de programa anárquico tipo o do Chacrinha. Seu advogado é o falecido Getulio Vargas, com quem atravessou décadas trocando juras de amor (menos) e ódio (mais).

O dono dos Diários Associados deleitava-se em épater le bourgeois. Sequências cortejando o grotesco o acompanham espinafrando, humilhando e constrangendo a burguesia, clube ao qual se integrou, mas que não tinha em grande monta. O burguês Doutor Assis resolveu montar um museu de arte e, com esse intuito, empenhou-se na expropriação da burguesia. Era ele quem dizia, nesses termos combativos. Também esvaziou muitos cofres dos seus jornais, revistas, TVs, rádios, agências informativas, tudo para comprar quadros e esculturas. No que deu isso? No legado _palavrinha da moda…_ que pode ser visitado logo ali, na avenida Paulista. Sim, o Masp.

A chanchada é psicodélica porque o roteiro parece fragmentado em excesso, como se fosse consequência de uma gota de LSD ou de uns goles de chá de cogumelo. Mas o caos é aparente. A recusa à harmonia preguiçosa é pensada, com a arte mimetizando a figura que retrata. Assim como um filme sobre um homem marcado pela ação terá muita ação.

O país é da Dercy Gonçalves porque o exercício de poder, se soa caricatural no filme, risível como a grande humorista, era e muitas vezes ainda é assim mesmo. Ou alguém acha que José Sarney em campanha eleitoral no Amapá ostenta os modos de cavalheiro reconhecidos nos chás da Academia? O Brasil é uma grande bagunça, mas a bagunça é mais generosa com uns e egoísta com outros. Getulio presenteou o amigo-inimigo Chatô com uma lei para arrancar a filha da mãe. Quantas leis ainda não são presenteadas hoje?

A Chateaubriand atribui-se um sem-número de achaques _quem não anunciasse em suas empresas era avacalhado e desmoralizado, amargava prejuízos. E dado às vendetas mais baixas. Uma delas, das menos cruéis, até anedótica, mirou um advogado que morava em Copacabana. Trabalhara para Chatô, haviam rompido. O ''Diário da Noite'', vespertino carioca dos Associados, publicou que o advogado decidira viver num mosteiro e fizera voto de pobreza. Assim que o sol nascesse, distribuiria toda sua fortuna na porta de casa. Imagine o povaréu que apareceu em busca de uns caraminguás.

O fundador da TV Tupi encerrava controvérsias editoriais aconselhando: quem quiser expor opinião que tenha o seu próprio jornal. Pagava ordenados mixurucas, mas fazia questão que os enviados especiais dos Associados se hospedassem no hotéis europeus mais chiques. Quer aumento?, ingadava. Use seu chachá, emendava, sugerindo se aproveitar da posição de jornalista para tomar algum. Vulgar e inescrupuloso? Ok, mas sincero. Será que o Brasil mudou tanto, a despeito de palavras mais polidas?

''Chatô'' escancara o carisma e o talento do criador da Ordem do Jagunço, fanfarronice cujo propósito era tripudiar sobre endinheirados e poderosos. E também os seus espectros mais sombrios.

Estão lá os coadjuvantes da sua vida, ainda que com nomes trocados e identidades combinadas: Maria Henriqueta, Corita, Samuel, Carlos (sim, o Lacerda, que trabalhou nos Associados), Aimée, Dóris, Emília, Gregório, Armando, Teresa, o Brasil do século 20 passeando da década de 1930 à de 1960. Dá a impressão de alucinação, mas é, para o bem e o mal, o Brasil de verdade.

Um prazer nem tão frequente no cinema: em vez da preguiça, a provocação estética e intelectual. ''Chatô'' mostra as vísceras do Brasil, mas não é, ainda bem, simulacro de dissertação sociológica, e sim uma aventura divertida. Com CPF de cinema, e não a adaptação automática e cômoda de livro para filme.

Também está lá um farmacêutico que aplicava no traseiro de Chateaubriand uma injeção de estimulante que outrora produzia os efeitos dos tais comprimidos azulzinhos contemporâneos. Não foi licença criativa, que seria legítima, dos roteiristas. Aconteceu, documenta o livro de Fernando Morais.  Aos 22, 23 anos, destacado pelo magistral biógrafo para a missão, quem entrevistou o farmacêutico fui eu, nos arredores da praça Mauá.

A vida de Assis Chateaubriand rendeu uma biografia maior.

E a biografia maior virou um filme admirável.

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