Blog do Mario Magalhaes

Livro conta o incrível dia em que a esquerda se uniu contra os fascistas

Mário Magalhães

blog - a revoada dos galinhas verdes

 

A esquerda só se une no cárcere, proclama o aforismo. Só pronunciou tal sentença, e a espalhou, quem não tem a mais remota ideia do que é a vida de militantes na cadeia. A clausura muitas vezes estimula as divergências, e não as convergências. É o que demonstra a história dos anos 1930, 1940, 1960 e 1970, com tanta desinteligência entre os presos políticos.

Idem fora dos presídios. Até mesmo em ações unitárias a unidade não decorreu de muitas opiniões comuns. Na primeira metade da década de 1940, a esquerda brasileira se dividia entre quem estava com o ditador Getulio Vargas ''na guerra'' ou ''na guerra e na paz''. Os primeiros aceitavam a frente contra o Eixo, mas em casa batalhavam pelo fim do Estado Novo (1937-1945). Os segundos, em nome da aliança contra o nazifascismo, preferiam dar trégua ao presidente e apoiá-lo sem pudores. Estavam juntos nas ruas, contra Hitler e companhia, mas guardavam diferenças sobre o gaúcho e seu regime.

Na mesma época, voltando ao pessoal em cana, os presos de esquerda racharam em Fernando de Noronha e na Ilha Grande, onde cumpriam pena. Uns toparam a oferta da administração, nomeada pelo Estado Novo, de trabalhar em troca de caraminguás. Outros recusaram colaboração com os carcereiros que representavam o governo antidemocrático.

Quem vê fotos de artistas e intelectuais se manifestando nas ruas do Rio contra a ditadura, de 1966 a 1968, ignora os confrontos nas assembleias nos teatros. Havia quem quisesse botar o bloco na rua, desfraldando bandeiras, e quem preferisse se limitar a manifestos e abaixo-assinados, argumentando que demonstrações em praça pública constituíam ''provocação'' aos generais linha-dura.

Deem uma olhada nas faixas dos atos, na virada da década de 1970 para a de 1980, contra a ditadura instaurada em 1964. Umas reivindicavam ''Abaixo a ditadura''. Outras, por seus portadores julgarem que tal estandarte configurava radicalismo tendente ao isolamento, pediam ''Pelas liberdades democráticas'', sem cobrar o fim da ditadura. Antes, em 1968, rivalizavam os brados ''Só o povo armado derruba a ditadura'' e, contra a aposta na guerrilha, ''O povo organizado derruba a ditadura''.

Em suma, é complicado unir a esquerda. A velha piada sobre os trotsquistas tem lastro real: dois formam um partido, três resultam em racha.

Nos princípios dos anos 1930, a esquerda estava fragmentada como sempre. Com o desgaste das democracias liberais, acentuado pela quebra da Bolsa em Nova York, e a ascensão do fascismo, na Itália, e do nazismo, na Alemanha, o ambiente adubou a formação de uma poderosa organização de extrema direita no Brasil. Batizada como Ação Integralista Brasileira, reunia centenas de milhares de integrantes, sacaneados como galinhas verdes por seus contendores.

Os integralistas marcaram para a tarde de 7 de outubro de 1934 um ato público em São Paulo, interpretado pelos inimigos como uma tentativa de exibição de força inspirada na marcha fascista sobre Roma, ocorrida 12 anos antes.

Foi então que se deu o milagre histórico, e a esquerda se uniu para pôr os fascistoides para correr. Uniu-se mesmo: anarquistas, stalinistas, trotsquistas, nacionalistas, sindicalistas, tenentistas, sociais-democratas, uma miríade de tons. Já contei esse episódio aqui no blog, no post ''Há 80 anos, antifascistas expulsaram extrema direita da praça da Sé''.

Acaba de sair em livro, pela editora Veneta, o mais espetacular relato sobre a batalha da praça da Sé. O autor é o jornalista Fúlvio Abramo (1909-1993), e o título, ''A revoada dos galinhas verdes: Uma história da luta contra o fascismo no Brasil''.

Além de jornalista qualificado, memorialista cativante e cabra escrupuloso até o último fio de cabelo, Fúlvio Abramo se beneficia de um trunfo especial em sua narrativa, publicada originalmente em 1984: ele foi um dos protagonistas da frente única de esquerda que pelejou na Sé e freou o crescimento do integralismo.

Li de uma vez só, sem parar, as 196 páginas (há uma boa seleção de fotografias e uma cronologia preparada pelo editor Rogério de Campos).

''A revoada dos galinhas verdes'', tremenda leitura para quem se interessa por história, pode ser encontrado nas melhores livrarias e, na editora, pela internet (basta clicar aqui).

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