Sobre o sotaque do Wagner Moura em ‘Narcos’
Mário Magalhães
Com a tarimba de quem morou por dez anos, a adolescência inteirinha, a menos de uma hora e meia da fronteira com o Uruguai, estou assombrado com a última deste nosso país idiossincrático: a pátria agora parece ser a de especialistas em espanhol, sobretudo em sotaque, até na pronúncia de cada rincão da Colômbia. Enfim, damos adeus à solidão da fala portuguesa em meio a terras castelhanas, reconhecemo-nos latino-americanos… _seria isso mesmo?
Junto com a estreia da novela das nove, o talk of the town tem sido a atuação do Wagner Moura na série ''Narcos''. Em particular, o seu acento em ''habla hispana'', na pele do traficante colombiano Pablo Escobar, nascido (1949) e morto (1993) no departamento de Antioquia.
Antes que atirem o primeiro petardo, mirando o interlocutor, e não as ideias, sou suspeito: conheço o Wagner Moura, considero-o um tremendo ator, um cidadão decente. E, sim, cedi a ele e à produtora O2 os direitos de adaptação cinematográfica de um livro que escrevi. Dito isso, vamos à arte.
Com direção do José Padilha, fotografia do Lula Carvalho e canção de abertura do Rodrigo Amarante, os dez episódios da temporada inaugural de ''Narcos'' são estupendos (a rigor, Padilha produz todos e assina a direção dos dois primeiros). Um trabalho de altíssima qualidade estética. Abandonei a segunda rodada de ''True Detective'' pelo meio, assistindo em pacote ao resto dos capítulos. ''Narcos'' é muito melhor. E, eis a contra-indicação, vicia. Como o Netflix oferece todos os episódios, é difícil parar de ver. Acabei na madrugada de domingo para segunda. Saí para trabalhar esgotado, mas sem arrependimento.
A interpretação do Wagner Moura é acachapante. Um ator menos talentoso se perderia em caras e bocas vivendo o criminoso sem escrúpulos que mandava explodir bombas e matava inocentes aos magotes. Em vez disso, o intérprete de ''Narcos'' criou um personagem ensimesmado, melancólico, de uma tristeza de derrotado mesmo quando triunfa. Um desempenho que mundo afora colhe aclamação de público e crítica.
O que mais impressiona no seu espanhol não é o sotaque brasileiro, mas como, em escasso tempo de preparação, alguém sem intimidade com a língua do García Márquez passou a defendê-la com galhardia e eficiência. É claro que em um ano, ou numa vida, ninguém perde integralmente a prosódia do idioma materno. Mas não ouvi nada que afetasse a verossimilhança. O que se vê na tela é Pablo Escobar, ou o magnífico personagem Pablo Escobar do Wagner Moura. A despeito da pronúncia de um não nativo. Como costuma ocorrer, as principais ciladas fonéticas se dão nas palavras iguais ou semelhantes ao português. Nossa tendência, força do hábito, é pronunciá-las como sempre fizemos.
Estranha a bronca com o sotaque do co-protagonista _Escobar divide o proscênio com um agente antidrogas norte-americano_ da série falada em inglês e espanhol. Que eu me lembre, pouca gente encrencou com o carioquês e o baianês em ''O homem que copiava'', ótimo filme do Jorge Furtado passado em Porto Alegre. Não era o caso, pois a verdade da história e dos personagens não deriva da pronúncia. Idem com a minissérie ''A casa das sete mulheres'', o que não ofuscou as virtudes do belo programa.
Em ''Comer, rezar e amar'', o Javier Bardem faz um brasileiro que não fala português como brasileiro. E daí? O Sean Connery manteve o sotaque escocês mesmo na pele de norte-americano. E o espanhol do Rodrigo Santoro-Raúl Castro, em ''Che'', difere do dos cubanos.
Como estava o russo do Omar Sharif em ''Doutor Jivago''? Não estava. O filme é em inglês, e o do grande ator tem sotaque egípcio.
E o alemão do Tom Cruise em ''Operação Valquíria''? Não sei, pois seu coronel Von Stauffenberg se comunica em inglês gringuíssimo.
O que isso tudo quer dizer? Que sotaque não determina o êxito da interpretação, e sim o conjunto da construção do personagem. E aí o Wagner Moura arrebenta, em mais uma tabelinha com o José Padilha.
De qualquer modo, não acho que seja ilegítimo ou besteira se incomodar com seu sotaque, também no Brasil e ainda mais na Colômbia. Cada cabeça uma sentença.
Enquanto a controvérsia rola no país em que boa parte do público prefere filmes dublados, o Wagner Moura vai se consagrando, inclusive nos Estados Unidos. Vem aí uma promissora carreira internacional.