Persiste, firme e sem pudor, o Brasil do ‘sabe com quem você está falando?’
Mário Magalhães
Com dezenas de multas de trânsito no currículo, 14 delas por embriaguez ao volante, o empresário Ivo Nascimento de Campos Pitanguy atropelou e matou na quinta-feira o operário José Fernando Ferreira da Silva. Testemunhas asseguram que Pitanguy estava bêbado. Ele passou alguns dias em cana, mas não demorou para sair. A Justiça mandou soltá-lo, com base na apreciação do Ministério Público, que divergiu da Polícia Civil no fundamental. A polícia indiciou o atropelador por homicídio doloso _ao dirigir alcoolizado, assumiu o risco de matar. Mas a denúncia da Promotoria classificou o homicídio como culposo, aquele sem intenção. Em suma, adeus, cadeia pública.
Um taxista contou que em seguida ao acidente (crime?), em vez de socorrer o atropelado, o motorista tentou ligar seu carro (para fugir?). Só se aproximou do operário agonizante quando bombeiros e PMs chegaram. Quando o taxista lhe pediu para desligar o motor, Pitanguy reagiu assim, informou o repórter Sérgio Ramalho: ''Tu sabe quem eu sou?'' Insistiu: ''Tu sabe quem eu sou?''
Antes mesmo de ler Roberto DaMatta eu já sabia, pelo meu pai, aluno dele, das considerações do antropólogo sobre o Brasil do ''sabe com quem está falando?'' como retrato da distinção entre brasileiros e brasileiros. O episódio na Gávea escancara a manutenção da diferença, ainda que o país de hoje seja um pouco menos desigual (o presidente da maior empreiteira nacional está em cana) que o dos tempos em que DaMatta teve a grande sacada.
Pitanguy estava com a carteira de motorista em dia, mesmo com 14 flagrantes de falta gravíssima. Talvez tivesse mesmo seus motivos para indagar ''tu sabe quem eu sou?'' Ninguém sabia quem era o operário morto. Justiça igual para todos, reafirma o cotidiano, não passa de balela.
(O blog reproduz no alto a abertura da reportagem de Caio Barretto Briso e Gustavo Goulart publicada sábado em ''O Globo''. Mesmo na correria, é possível contar bem uma história.)