Respeito ao voto popular e cerco à ladroagem não são excludentes; combinam
Mário Magalhães
Expressas sem recato ou insinuadas com circunlóquios de pudor, duas ideias têm sido difundidas sobre a crise: 1) para combater os saqueadores de dinheiro público, seria legítimo fulminar a soberania do voto popular, que em outubro reelegeu a presidente Dilma Rousseff; 2) em nome do respeito à decisão nas urnas, corruptos e corruptores estariam autorizados a manter a roubalheira que vigorou e talvez ainda vigore em empresas controladas pela União, sobretudo a Petrobras.
As duas abordagens ofendem a Constituição, que protege tanto o poder do sufrágio dos cidadãos quanto o patrimônio do Estado.
A defesa da soberania do voto e o cerco à ladroagem configuram, perdão pelo clichê, duas faces da mesma moeda: o acatamento da ordem constitucional. Negar uma ou outra face é ilegítimo e ilegal. O Brasil já sofreu demais, ensina a história, com golpistas e ladrões.
Cabe às instituições do Estado de Direito investigar, acusar, defender e julgar cidadãos e companhias por crimes alegados.
Se houver provas e forem culpados, têm mais que pagar, na forma escrupulosa da lei, Eduardo Cunha, José Dirceu, Antonio Anastasia, Renan Calheiros, Eduardo Azeredo, Vaccari Neto, Fernando Collor, Sérgio Cabral Filho, a penca de corruptos da Petrobras e outras ''bras'', o bando de corruptores das empreiteiras, doleiros bandidos e larápios de toda espécie. Se houver provas, evidentemente.
É o que determina a Constituição e exige a democracia.
A gatunagem na Petrobras é mais um passo na regressão da conquista nacional que foi a introdução do monopólio estatal do petróleo e a criação da empresa encarregada de exercê-lo e dele se beneficiar.
O que houve (há?) na Petrobras foi (é?) privatização criminosa de patrimônio público, transferido para bolsos privados.
Inexiste prova ou indício de envolvimento da presidente da República com as pilhagens reveladas pela Operação Lava Jato. Logo, falta lastro constitucional para propor seu impeachment.
Seria aberrante afastar Dilma pelas ditas pedaladas fiscais. Tais práticas foram correntes em administrações anteriores, sem punição. Castigar a presidente agora equivaleria a consagrar a fórmula de dois pesos e duas medidas.
Idem pela doação de milhões de construtora para a campanha eleitoral vitoriosa. Porque seria insustentável julgar que milhões para uma candidata têm propósitos obscenos e outros tantos milhões da mesma empresa para o postulante derrotado não têm.
Há quem diga que, por não agir _o que é lamentável_ como prometido na campanha, Dilma tem de ter o mandato abreviado. Ora, Fernando Henrique Cardoso fez, em 1999, o que na campanha de 1998 assegurou que não faria. Nem por isso foi derrubado.
A regra do jogo não permite o afastamento de governante com base em pesquisa de opinião (Dilma não alcança nem dois dígitos nesse quesito).
A regra, nesse caso, de fato é clara: ganha quem tem mais votos. A presidente colheu 54.501.118 no ano passado. Se fosse hoje, ficaria longe disso. Mas o calendário eleitoral determina eleição para o Planalto em 2018.
Três aspectos do cenário nebuloso e de prognósticos temerários:
1) ninguém é mais favorecido hoje por palavras de ordem pela destituição de Dilma que Eduardo Cunha. O afastamento da presidente e do seu vice significaria o capo da Câmara assumir o governo, ainda que por tempo limitado;
2) quem bate panela e grita por impeachment não é necessariamente igual a Jair Bolsonaro, Silas Malafaia, Marcos Feliciano e companhia. Mas está _não é opinião, mas fato_ ao lado deles nas manifestações;
3) nunca vi tanto ódio de certos segmentos sociais como o nutrido contra Lula. Outro dia observei damas e cavalheiros esbravejando contra o ex-presidente. Tempos atrás, o mesmo grupo espumava contra a nova legislação que ameniza um pouco a atávica exploração do trabalho doméstico.
Enfim, democracia é isso: cada um na sua.
É também obediência à Constituição.