Nos 70 anos da bomba de Hiroshima, lembranças dos origamis da menina Sadako
Mário Magalhães
Hoje faz 70 anos que os Estados Unidos despejaram a bomba sobre Hiroshima. Lá testemunhei a cerimônia de 1995, meio século do horror. Em 2002, regressei à cidade japonesa, enquanto corria a Copa. Virei madrugada, reencontrei escombros, passeei pelo tempo. Contei em crônica publicada na ''Folha'' e reproduzida abaixo o que vi e ouvi. Termina com a história de uma, como diria o Vinicius, menina muda, telepática.
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Uma atitude intriga os novatos que se aventuram pelo bairro boêmio de Nagarekawa, em Hiroshima, no comecinho da madrugada. As mulheres e homens que distribuem folhetos, anunciando de clubs com música pop a bares de prostituição, ignoram quem não aparenta ser japonês. Arranhando o inglês, uma garota esclarece: “American no.” Ao ver a credencial de cobertura jornalística da Copa indicando o Brasil como porto de origem, corrige: então, ok. Outro propagandista insiste: norte-americanos não são bem-vindos.
Em trajes civis coloridos, um soldado se identifica como Luck e diz ser do Estado do Colorado. Ele confirma a barração generalizada. Dois colegas seus, que não informam nem o primeiro nome, contam vir da Califórnia. Desdenham, jurando que não sentem falta dos inferninhos que os rejeitam. Os três aproveitam a folga da base militar dos Estados Unidos em Iwakuni, quarenta quilômetros ao sul de Hiroshima, onde se agrupam 5.000 marines.
Há uma segunda surpresa: o motivo de veto aos gringos, justificam os leões de chácara, não é o indisfarçável ressentimento pela primeira bomba atômica lançada contra alvos humanos.
Às 8h15 do dia 6 de agosto de 1945, um bombardeiro B-29 despejou um artefato que explodiu a 580 metros do solo. Num raio de dois quilômetros, tudo foi incendiado. Em cinco anos, contando os que morreram na hora e das queimaduras e efeitos prolongados da radiação, acumularam-se 200 mil vítimas, mais da metade da população da época. Ainda no ano passado, houve mortes por câncer com origem mais de meio século atrás. Hiroshima se transformou em símbolo do horror e da covardia nuclear. Três dias depois de ser atacada, a barbárie alcançou Nagasaki. O Japão, aliado de Alemanha e Itália na Segunda Guerra, rendeu-se.
“O problema com os americanos não é esse, antigo, mas o fato de eles arrumarem encrenca em tudo que é lugar aonde chegam”, diz o brasileiro Wagner Ioshiu, operário numa fábrica de autopeças, concordando com os leões de chácara.
Rejeitados, os militares de Iwakuni acabam frequentando boates latinas. Na brasileira Hot Gin, dezenas de norte-americanos se requebram com pop americano, forró e axé. Garotas japonesas saem no braço por soldados. Há um evidente esforço de mimetizar os modismos dos Estados Unidos, país em relação ao qual o sentimento aqui varia do ódio à paixão.
Apesar da ocidentalização do Japão, em especial dos jovens, o contraste cultural com a Europa e os EUA é considerável. Certas diferenças foram cutucadas em 1959 pelo francês Alain Resnais no clássico Hiroshima mon amour. O cineasta narra o affair entre uma atriz francesa e um arquiteto japonês na cidade da bomba, em um filme de contundente conteúdo antinuclear.
De manhã, a impressão da madrugada renova-se no Parque Memorial da Paz, na área próxima ao centro da explosão. Hiroshima, 882 quilômetros a sudoeste de Tóquio, expõe suas chagas, não quer esquecê-las, contudo está longe de viver de luto e a chorar o passado.
Músicos cantam rock em inglês e japonês para angariar uns trocados. Colegiais descobrem-se com minissaias curtíssimas até para padrões brasileiros _são compridas, mas ao sair de casa e da escola, às vezes mesmo no domingo, elas colam as barras.
Em um extremo do parque fica o prédio com cúpula onde funcionava um escritório da Prefeitura de Hiroshima. A bomba explodiu a uma distância horizontal de 160 metros. As ruínas permanecem como em 1945. Voluntários passam um abaixo-assinado em defesa da eliminação dos arsenais atômicos e exibem cópias de jornais velhos com imagens de pessoas sem pele. “É para a juventude se lembrar”, diz o tradutor Zengeo Inuzuka. “O perigo é a forte influência dos Estados Unidos.”
No Museu da Paz, o silêncio sepulcral é quebrado pela melancolia da trilha sonora de um vídeo e por soluços de visitantes comovidos. Lugar deprimente, como os campos de concentração do Holocausto preservados como encontrados. A exposição tem relógios de mortos com a hora, 8h15, em que pararam. Lembra que milhares de vítimas eram coreanos que cumpriam trabalhos forçados em fábricas japonesas. Fotografias imortalizam as sombras desenhadas no chão por pessoas que se desintegraram. De queimados e deformados, de cadáveres feitos múmias, de crianças que perderam o cabelo ceifado pela radiação.
Do lado de fora, ergueu-se um monumento em homenagem à menina Sadako Sassaki. Ela tinha dois anos em 1945. Começou a sofrer os efeitos da radiação aos doze. Com leucemia, ouviu que fazer mil dobraduras de papel (origamis) de um pássaro (Tsuru) poderia lhe dar vida longa. Ela fez centenas, mas morreu antes das mil. Colegas de escola terminaram a tarefa. Sadako foi cremada com seus pássaros.
Até hoje, estudantes de todo o Japão enviam milhões de origamis por ano para o Parque da Paz.