E o Marin, hein! Foi ou não foi informante dos EUA durante a ditadura?
Mário Magalhães
Um dos problemas de escrever biografia de personagem que não bateu as botas é o protagonista ainda poder viver eventos relevantes que ficarão fora do livro.
Por outro lado, com o biografado vivo, é possível indagá-lo sobre passagens obscuras da sua vida.
Bom exemplo é José Maria Marin, atualmente em temporada involuntária na Suíça.
Caso, é claro, haja um candidato a biografar o ex-capo da CBF _não contem comigo.
O primeiro repórter que tiver a oportunidade de entrevistá-lo com certeza não deixará de perguntar: eventualmente ou com regularidade o senhor, durante a ditadura, prestou serviços de informante ao governo dos EUA?
Talvez Marin, vai que os astros ao menos uma vez conspirem a favor, seja sincero.
A pergunta não é um disparate. Como revelou o repórter Rubens Valente, documento sigiloso de funcionário do Departamento de Estado sugere que o então vereador de São Paulo transmitiu informações aos norte-americanos (leia a reportagem clicando aqui).
Trata-se de um telegrama de duas páginas classificado como ''confidencial'' e transmitido em 16 de setembro de 1969. Assina-o Robert Corrigan, cônsul-geral dos Estados Unidos em São Paulo. Os destinatários são outros diplomatas dos EUA.
O contexto é o da perseguição policial e militar aos sequestradores do embaixador dos EUA. De 4 a 7 de setembro, Charles Burke Elbrick havia sido refém de duas organizações guerrilheiras que combatiam a ditadura em vigor. Foi solto depois da libertação (e banimento) de 15 presos políticos e da divulgação de um manifesto oposicionista que não seria publicado de outro modo no país sob censura.
Corrigan informou que existia ''ceticismo crescente'', nos meios políticos e jornalísticos, sobre a capacidade de o governo brasileiro identificar e prender os militantes que capturaram Elbrick.
Contou que ''elementos de extrema direita'' tinham responsabilizado os EUA pelo sequestro. Alguns acusavam o embaixador de ser displicente com a própria segurança.
Uma das versões dava conta de que o propósito seria desmoralizar o governo brasileiro, para torná-lo _ainda_ mais dócil diante da Casa Branca, favorecendo os EUA em negociações comerciais como a do café solúvel.
Acrescenta: ''O comandante linha-dura da Quarta Zona Aérea, brigadeiro José da Silva Vaz [o correto é José Vaz da Silva], alegadamente disse ao presidente da Câmara Municipal de São Paulo, José Maria Marin, em 14 de setembro, que a CIA teria engendrado o sequestro''.
Corrigan registra que os funcionários norte-americanos já haviam ouvido tal suposição sobre o sequestro e não a tinham encarado seriamente.
O telegrama não esclarece se a fonte do cônsul foi Marin, hoje em cana na Europa e ameaçado de extradição para os Estados Unidos.
Ou se Marin narrou a alguém a conversa com o brigadeiro e esse alguém transmitiu o relato a Corrigan.
A diferença é que, na primeira hipótese, Marin teria colaborado diretamente com os EUA.
Na segunda, não necessariamente.
De qualquer maneira, se o brigadeiro pronunciou tamanha tolice, associou-se a teorias conspiratórias, sem lastro nos fatos, espalhadas pelos setores mais truculentos da ditadura.
Elbrick foi sequestrado pela Ação Libertadora Nacional, que comandou a ação, e pelo grupo que então passou a se denominar Movimento Revolucionário 8 de Outubro, autor da ideia de capturar Elbrick.
A participação conhecida da CIA no episódio foi na caçada aos sequestradores.
Três lembranças:
1) o sequestro de Elbrick foi a mais espetacular ação da esquerda armada contra a ditadura;
2) o governo dos EUA conspirou para o golpe de 1964, e em 1969 apoiava e colaborava com a ditadura brasileira;
3) José Maria Marin integrava a Arena, o partido da ditadura. Em 1975, seria personagem sinistro dos dias da morte, sob tortura, do jornalista Vladimir Herzog.
O telegrama de Corrigan é um dos 538 documentos relativos ao Brasil recém-liberados pelo governo dos EUA.
Estão desde ontem à disposição no site do Arquivo Nacional (para pesquisar, eis o link).