Blog do Mario Magalhaes

Personagem de Umberto Eco ensina: ‘Como passar opiniões sem dar na vista’

Mário Magalhães

O autor italiano Umberto Eco autografa exemplar de seu novo livro "Número Zero" em Paris.

Em Paris, Umberto Eco autografa ''Número Zero'' – Foto Francois Guillot/AFP

 

Na aparência, 207 páginas com letras robustas e entrelinhamento generoso, o novo romance de Umberto Eco não tem a pretensão literária dos catataus que o autor italiano já escreveu.

A impressão é falsa. Devora-se ''Número Zero'' com gosto. Saiu no Brasil pela Record, com tradução de Ivone Benedetti.

O título se refere à edição experimental de uma publicação. Serve tanto para apresentá-la à comunidade quanto ao mercado.

No livro, trata-se do jornal ''Amanhã'', projeto com nenhuma intenção jornalística.

Seu propósito é influenciar, fazer amigos e faturar. Sem escrúpulos, e ainda que nunca venha a ter número 1.

Com a ação concentrada numa redação jornalística, em 1992, Eco passeia pelo pós-guerra. A ideia que ele transmite chancela a de quem acompanha a história de longe: a Itália, nada estranho para nós, é uma grande bagunça.

O narrador é um jornalista sem fortuna. É dele a frase ''o prazer da erudição é reservado aos perdedores''.

O personagem mais interessante é outro jornalista, devoto de teorias da conspiração. Na cabeça do maluco, os principais acontecimentos do seu país depois de 1945 decorrem do fato de que, ao contrário do que contam os anais, Mussolini escapou vivo da refrega.

Sarcástico e corrosivo com o doido _que em outros capítulos da história talvez não seja tão doido_, Eco é implacável com o ambiente jornalístico em meio à crise que desembocaria na ascensão de Berlusconi, magnata dos meios de comunicação.

Um editor vale-tudo derruba boas pautas, impõe outras absurdas. Seu fim não é a informação, mas se apoiar na embalagem jornalística para extorquir, ameaçar, intimidar e fazer cabeças.

Em certa passagem, ele fala da importância de, em reportagens e na edição, vender o peixe aparentando equilíbrio entre versões e opiniões: ''Não são as notícias que fazem o jornal, e sim o jornal que faz as notícias''.

Apesar dos motivos para chorar, o livro é muitíssimo engraçado.

Abaixo, o blog reproduz dois breves trechos de ''Número Zero'', um deles sobre a receita que está no título do post.

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Perdedores

''Os perdedores, assim como os autodidatas, sempre têm conhecimentos mais vastos que os vencedores, e quem quiser vencer deverá saber uma única coisa e não perder tempo sabendo todas, o prazer da erudição é reservado aos perdedores. Quanto mais coisas uma pessoa sabe, menos coisas deram certo para ela.'' (Colonna, o narrador)

Jornalismo

''Mas para passar opiniões sem dar na vista também há outros meios. Para saber o que se vai pôr num jornal é preciso, como se diz nas outras redações, organizar a pauta. Notícia para se dar há infinitas no mundo, mas por que dizer que houve um acidente em Bergamo e ignorar que houve outro em Massina? Não são as notícias que fazem o jornal, e sim o jornal que faz as notícias. E saber pôr junto quatro notícias diferentes significa propor ao leitor uma quinta notícia.'' (Simei, editor)