Ao bajular Kissinger, Dilma tripudia sobre sua própria história
Mário Magalhães

O padrinho de torturadores e a brasileira torturada – Foto Roberto Stuckert Filho/Presidência/AFP

Estádio Nacional: ''Um povo sem memória é um povo sem futuro'' – Foto www.tenfield.com.uy
Só um parvo juramentado ignora que não está na moda zelar por sua própria história, no caso de quem tem uma história digna de zelo.
Ainda assim, é assombrosa a sem-cerimônia com que a presidente da República tripudia sobre o seu passado.
Nesta segunda-feira melancólica, Dilma Rousseff não somente se encontrou com Henry Kissinger, ex-secretário de Estado dos EUA, como adulou-o sem resquício de pudor. Na apoteose da bajulação, incensou-o como ''pessoa fantástica, com grande visão global”.
De 1970 a 1972, a valente guerrilheira Dilma amargou a prisão por lutar contra a ditadura. Foi torturada com choques elétricos e pancadas, padeceu no pau-de-arara, conheceu a barbárie.
Nessa época, o governo dos Estados Unidos apadrinhava a ditadura brasileira que consagrara como orientação de Estado a tortura contra adversários políticos. Kissinger era conselheiro de Segurança Nacional, influenciando decisivamente a política externa da Casa Branca.
Em 1973, ele assumiu o posto equivalente ao de ministro das Relações Exteriores. Como ''conselheiro'' manda-chuva, na bica de se tornar secretário de Estado, articulou com golpistas chilenos a deposição do presidente constitucional Salvador Allende.
No Estádio Nacional, em Santiago, cidadãos foram torturados, executados e tiveram os corpos sumidos para sempre. Um deles foi o exilado brasileiro Wanio José de Matos.
Kissinger batizou e protegeu outras ditaduras que exterminavam à margem da suas já autoritárias leis, como a da Argentina e a do Uruguai.
Henry Kissinger simboliza o horror. É ídolo de viúvas da ditadura. Abençoa conspiradores contra a democracia. Inspira golpistas que rejeitam a soberania das urnas. Representa os valores contra os quais a presidente brasileira dedicou boa parte de sua vida.
Num dia, Dilma chora pela memória do amigo e companheiro de lutas Carlos Alberto Soares de Freitas, o Beto, ''desaparecido'' em 1971.
Noutro, rasteja diante de Kissinger, ''pessoa fantástica''.
Lágrimas por Beto não combinam com o servilismo diante do cúmplice dos assassinos de Beto.
O propósito do beija-mão seria trazer investimentos estrangeiros ao Brasil.
Um erro. Não é fulminando a decência, ao sabujar o grande articulador dos regimes da tortura e fiador da Operação Condor, que se constrói uma nação.
Pouco antes de saber do convescote em Nova York, assisti pela TV à semifinal da Copa América, triunfo do Chile sobre o Peru.
O jogo foi no Estádio Nacional, onde o brasileiro Wanio foi visto pela última vez.
Continua lá, no antigo campo de concentração, pintado junto à arquibancada, um apelo às novas e velhas gerações: ''Um povo sem memória é um povo sem futuro''.
Os estádios também dão suas lições.