Censura: com lei em vigor, Marin pode vetar biografia que conte sua prisão
Mário Magalhães
Dois episódios desses dias:
1) José Maria Marin, ex-presidente da CBF, está preso na Suíça, acusado de falcatruas nos EUA;
2) nesta quarta-feira, o Supremo Tribunal Federal julga ação direta de inconstitucionalidade que busca impedir que dois artigos do Código Civil sirvam para proibir a circulação de biografias não autorizadas pelos biografados e seus herdeiros.
Se um biógrafo (livro), acadêmico (dissertação e tese) ou cineasta (documentário, portanto não ficção) se dispuser hoje a reconstituir a trajetória de Marin, o antigo deputado da Arena tem chances de impedir a difusão ou exibição da obra. Para isso, recorreria à Justiça, escudado na legislação em vigor.
Eis o que determina o artigo 20 do Código Civil, de 2002: ''Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais''.
Se Marin achar que o relato de sua detenção lhe atinge a ''boa fama'', a norma pode favorecê-lo, desde que o juiz concorde com ele.
Um livro precisa ser vendido para ao menos se pagar e, com muita sorte, recompensar um pouco do trabalho vasto e insano do biógrafo e dos editores. Muitas biografias são peças de jornalismo. Filiam-se ao gênero jornalístico da reportagem. Como são comercializadas, a Justiça pode interpretar que têm ''fins comerciais''.
Na hipótese de ferirem a ''boa fama'' e terem ''fins comerciais'', os ''escritos'' exigiriam o consentimento do biografado (''Salvo se autorizadas…'').
Em suma, a liberdade de expressão, o direito à informação e à memória deixam de ser patrimônio social e conquista democrática para se transformarem em prerrogativa de José Maria Marin ou outro personagem histórico.
Por mais caricatural que possa parecer o exemplo, é assim mesmo que funciona, como comprova a interdição de numerosos livros e outras produções jornalísticas e culturais.
O Código Civil contradiz garantias da Constituição Federal, de 1988. A Constituição combina direitos de informação e de expressão com direitos à privacidade e à intimidade.
Mas é clara como águas da baía de Guanabara dos sonhos: ''É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença''.
Logo, a censura é inconstitucional.
Ao impor autorização de quem é objeto de biografias (que nem são citadas explicitamente no enunciado), o Código Civil rende-se à censura prévia.
O Brasil é a única grande democracia do planeta em que tal aberração obscurantista vigora.
O padrão democrático conserva _e tem de conservar_ o direito de busca por Justiça e reparação por quem se sentir violado em direitos. Mas censura prévia é outra coisa.
Há outras possibilidades sombrias evidenciando como o Código Civil, se interpretado como sinal verde à censura prévia, é daninho:
1) se a família de Tancredo Neves considerar que a saúde do falecido presidente é assunto de interesse exclusivamente privado, pode tentar impedir a circulação ou exigir o recolhimento de biografia que, em vez de reproduzir a cascata, imprima a verdade sobre a doença que o matou;
2) se a família de Juscelino Kubitschek quiser, pode tentar proibir na Justiça biografias que contem que, ao morrer num controverso desastre de automóvel, o ex-presidente viajava para encontrar a regra três;
3) os herdeiros de Sérgio Paranhos Fleury poderiam tentar apagar da história as sessões de tortura e execução das quais participou o abominável delegado.
O que está em jogo amanhã no STF é o direito de a sociedade ter acesso à sua memória. A ação proposta pela Associação Nacional dos Editores de Livros não pede a mudança do texto do Código Civil, mas a declaração de inconstitucionalidade das passagens que chancelam a censura.
Batalha-se para que a história possa ser contada e interpretada em versões plurais, sem pensamento e relato únicos.
A lei em vigor estimula a história chapa-branca. Como se sabe, muitas e muitas vezes ela não conta bem o que aconteceu.
O julgamento no Supremo não é assunto só de editores. É, sobretudo, dos cidadãos.