Blog do Mario Magalhaes

Não esqueçam o que eu escrevi: Se tivesse ‘padrão Fifa’, Brasil seria pior

Mário Magalhães

Junho de 2013: faixa exibida em protesto em Fortaleza – Foto Luiz Paulo Montes/UOL

 

Juro pelos que me são mais caros que eu não encomendei a coincidência de data aos investigadores federais e procuradores norte-americanos, nem aos policiais suíços…

Na manhã de 27 de maio de 2015, ontem, eles desencadearam uma operação que vai colocando em cana cartolas vinculados à Fifa, inclusive o ''nosso'' José Maria Marin.

Um ano antes, cravadinho, na manhã de 27 de maio de 2014, o blog publicava o post ''Se tivesse 'padrão Fifa', o Brasil seria muito pior''.

Os episódios e revelações das últimas horas reforçaram minha convicção.

Ao contrário de certa tradição nacional, não peço para esquecerem o que escrevi. Republico abaixo o artiguete.

Aos arqueólogos que se interessam pelo tema da hidrofobia eleitoral, sugiro um passeio pelos trezentos comentários de leitores que se pronunciaram sobre o texto ou por ele se sentiram estimulados a opinar.

Para ler, basta clicar aqui.

Eu não tinha o propósito de falar sobre governo, oposição, candidatos, nada disso.

Apenas tratei do incensado ''padrão Fifa''.

Mas muita gente não entendeu, e apanhei feito cachorro magro.

Quantos ainda discordam das linhas de um ano atrás?

(O blog está no Facebook e no Twitter )

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Se tivesse 'padrão Fifa', o Brasil seria muito pior

(27 de maio de 2014)

A palavra de ordem se disseminou com intenção generosa: o Brasil padrão Fifa seria melhor.

No Google, aparecem 460 mil registros quando se digita “padrão Fifa'' entre aspas.

Os serviços públicos, a começar por educação e saúde, teriam mais qualidade, se mimetizassem o alto nível da dona do futebol _é a ladainha que ouvimos desde junho de 2013.

Com o perdão dos que adotaram a divisa, eu acho que o padrão Fifa é uma balela ou significa o avesso do lugar-comum que se fixou no imaginário nacional.

O país seria muitíssimo pior caso se espelhasse nos valores, métodos e obra de Sepp Blatter e seus bons companheiros.

Na saúde, o padrão Fifa seria o contrário de cuidar da vida dos brasileiros, o que se faz (ou deveria ser feito) com bons hospitais e pronto-socorros, profissionais qualificados e bem remunerados, prevenção acurada, saneamento para todos, alimentação decente e outras providências.

Seria o contrário porque a Fifa secundariza a saúde dos jogadores de futebol e prioriza o caixa.

Na Copa de 94, a entidade, ainda conduzida por João Havelange, impôs jogos ao meio-dia no escaldante verão californiano.

Já na gestão de Joseph Blatter, entregou de modo suspeito o Mundial de 2022 ao Catar, onde o calor torturante ataca na época do ano que a tradição reserva ao torneio.

Isso é se preocupar com a saúde?

A educação inspirada no padrão Fifa não seria dos sonhos, e sim o oposto.

Ao abordar o racismo, em vez de ensinar a repulsa, os professores pregariam tolerância com a segregação.

Por todo o planeta, acumulam-se episódios de preconceito. Em vez de punir as agremiações que acolhem torcedores racistas, a Fifa somente obriga seleções a entrarem em campo com faixas cujos dizeres, embora justos, estão longe de proporcionar o efeito de castigos exemplares.

E as lições de democracia?

O que há de se aprender com a política elitista de preços escorchantes dos ingressos?

Mesmo dentro das ditas arenas, camarotes chiquérrimos documentam e celebram a desigualdade obscena.

Uma federação que interdita a alternância de governo e eterniza seus capi sugere democracia? Por mais de 20 anos, Havelange não largou o osso. Seu sucessor mantém idêntico apetite.

De acordo com o padrão Fifa, ditaduras não são ruins e ditadores são todos boa gente, desde que se prestem aos propósitos dos poderosos chefões encastelados na Suíça. Já havia sido assim na Copa de 78, na Argentina do genocida Videla, e continua hoje, quando os tiranos mais sinistros são bem-vindos na entidade.

O que a Fifa diria sobre controle rigoroso de negócios em geral e operações financeiras em particular?

Dificilmente apresentaria como case o esquema que resultou na escolha do Catar.

Muito menos o que permite que amigos da cartolagem lucrem com ingressos da Copa, fazendo decolar a preços ainda mais exorbitantes pacotes que já são para poucos.

É essa a gestão que queremos como padrão?

O padrão Fifa subverte o ensinamento franciscano do “é dando que se recebe'', a considerar tantas denúncias de propinas.

O que o padrão Fifa propõe para quem é flagrado em impedimento, senão a impunidade? Que punição houve para Havelange e Ricardo Teixeira?

É essa a Justiça ideal, o padrão Fifa de combate à corrupção?

Em que o Brasil prosperaria se imitasse o comportamento do secretário-geral Jérôme Valcke?

Ele é o mesmo executivo que embolsou, na condição de lobista, dinheiro da candidatura brasileira ao Mundial e mais tarde, na pele de cartola, sugeriu um pontapé no nosso traseiro.

Do seu papel no lobby só se soube graças a furo do repórter Sérgio Rangel.

Almejamos a transparência padrão Fifa, que escondia o frila do francês?

Em matéria de inovação e evolução, será que o caminho é o da Fifa, que resiste [resistia] até ao controle eletrônico para saber se a bola entrou no gol?

De todas as expressões do farisaísmo do padrão Fifa, duas se destacam.

A primeira, quando a entidade fala em legado disso e daquilo para o Brasil. Ela está interessada em multiplicar sua fortuna. E só.

E quando alardeia sua devoção pelo futebol. A Fifa mercantilizou a níveis jamais vistos a mais genuína paixão dos brasileiros. Apropriou-se até de nomes consagrados, como “Copa do Mundo''.

Por sorte, pelo menos isso não conseguiram nos roubar, a paixão que constitui a essência do futebol.

A despeito de todas as mazelas que vigoram no país que figura entre os campeões da desigualdade, o Brasil no padrão Fifa seria ainda mais egoísta, hipócrita, inescrupuloso, obscuro e desigual.

Padrão Fifa é exigir do outro o que não se faz _faça o que eu digo, e não o que eu faço.

A Fifa já nos fez muito mal. Fará mais ainda se o seu famigerado padrão se tornar o nosso modelo.