A morte da torturada e o torturador feliz com nova decisão da Justiça
Mário Magalhães
Se o escritor Gabriel García Márquez viveu para contar, como resume o título de suas memórias, a guerrilheira Inês Etienne Romeu sobreviveu para contar.
Contou o que viu e viveu na Casa da Morte, antro clandestino de tortura e execução de oposicionistas que a ditadura manteve em Petrópolis ao menos na primeira metade da década de 1970.
Aos 72 anos, Inês morreu ontem, cansada de tantas batalhas. De acordo com parentes, partiu enquanto dormia.
Ela sobreviveu à Casa da Morte e, depois da anistia, foi responsável pela revelação da existência daquele aparelho dedicado ao sadismo e a horrores, síntese da tortura adotada como política de Estado.
Presa em 1971 pelo delegado Fleury e sua turma, acabou na Casa da Morte, de onde saiu para cumprir pena até 1979.
Sem sua coragem e perseverança, o Brasil desconheceria um dos endereços mais sombrios do nosso século 20.
Em 1989, Inês narrou a Fábio Konder Comparato seu calvário de 96 dias na Casa da Morte. De acordo com o jurista, conforme destacou o relatório da Comissão Nacional da Verdade, a antiga presa política lhe falou:
''Professor, eu não quero um tostão de indenização. Esse dinheiro de indenização vem do povo, e a grande vítima é o povo. […] O que eu quero é que a Justiça do meu país reconheça oficialmente que eu fui sequestrada, mantida em cárcere privado, estuprada três vezes por agentes públicos federais pagos com o dinheiro do povo brasileiro''.
Coincidência cruel, no mesmo dia em que Inês partiu tomou-se conhecimento de notícia alvissareira para o ex-chefe do maior campo de concentração, tortura e extermínio mantido pela ditadura. O coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra recebeu boa nova do Supremo Tribunal Federal.
Na semana passada, decisão provisória da ministra Rosa Weber suspendeu ação penal que tramita em São Paulo contra o oficial do Exército e dois cupinchas seus, um deles figurinha fácil em protestos de rua recentes.
Ustra foi acusado pelo Ministério Público Federal como um dos autores do sequestro do militante Edgar de Aquino Duarte, desaparecido em 1971.
Como o cidadão sequestrado continua sumido, o crime de sequestro permanece, está em curso. Por isso, Ustra e os dois policiais civis não estão amparados pela Lei de Anistia de 1979, interpretam os procuradores da República que ingressaram com a ação.
''Rosa Weber considerou que o tema é objeto de dois processos que estão pendentes de julgamento pelo plenário do tribunal'', informa reportagem de Márcio Falcão (leia aqui).
Inês Etienne Romeu, mulher valente, só queria justiça.