Reação a sem-teto no prédio de Eike expõe maldade, hipocrisia e preconceito
Mário Magalhães
Desde a madrugada de ontem quase uma centena de moradores de rua ocupa a antiga sede do Clube de Regatas do Flamengo, no morro da Viúva, aqui no Rio. Em 2012 o prédio foi arrendado a uma empresa de Eike Batista, em contrato ainda em vigor. A Polícia Militar impede que água e alimentos sejam entregues aos sem-teto, entre os quais duas dezenas de crianças, num edifício que já não conta com instalações elétricas. Moradores e políticos protestam contra a presença que consideram indesejada. Com a ruína de Eike, o projeto de transformar o mafuá num hotel de luxo não saiu do papel. Há muito tempo ninguém mora ali, e o local permanece abandonado, sem uso para qualquer fim.
A reação à chegada dos sem-teto expõe maldade, hipocrisia e preconceito.
A maldade suprema é impedir a chegada de comida. Os agentes do Estado podem provocar danos físicos e psicológicos nos cidadãos que se instalaram na avenida Rui Barbosa. É crime matar alguém de fome. E é isso o que, no limite, estão fazendo as autoridades. Há bebês de colo entre os sem-teto.
A hipocrisia é a grita dos bacanas. Eis o que disse a vereadora Leila do Flamengo (seu nome de guerra se refere ao bairro, não ao clube, bem entendido): ''Estamos revoltados com a invasão. Um prédio tão belo que já funcionou como sede do Flamengo se deteriorou e estava desprotegido. Alguma medida tem que ser tomada, não podemos permitir que fique assim, queremos que eles tenham para onde ir, mas invadir e querer direitos é injusto''.
Trocando em miúdos, a vereadora não se revolta com o absurdo de um prédio sem nenhuma função social, mas sim com os pobres no sítio decadente. Ela não se revolta com a existência de brasileiros que carecem de moradia. Ainda por cima, audácia do povaréu, ''querem direitos''.
Exemplo de preconceito é o prognóstico de uma moradora da vizinhança: ''Esse pedaço da Rui Barbosa já é perigoso e agora vai piorar muito''.
Não é necessário recorrer a muitos neurônios para saber que costuma se dar o contrário: quanto menos movimentada a via, no caso aquela ao sopé do morro da Viúva, mais chance há de larápios atacarem. Com mais movimento, fica mais difícil para os gatunos. Existe uma lógica preconceituosa na previsão de que ''vai piorar muito'': os novos vizinhos dos prédios de luxo são pobres.
No comecinho de 2012, quando o Flamengo aprovou o arrendamento, a maioria dos apartamentos já não tinha moradores. Logo os últimos partiram. Restou um edifício emporcalhado e com rastros de destruição. Ninguém me contou, eu vi _na última vez, domingo de manhã, quando estacionei o carro diante dele.
A velha sede rubro-negra ostentou dias de glória e pompa nas décadas de 1950 e 1960. Com as janelas debruçadas sobre a baía de Guanabara, o Pão de Açúcar e, mais tarde, o aterro do Flamengo, os salões recebiam gente famosa.
Num dos apartamentos mais badalados, moravam os grandes cantores Nora Ney e Jorge Goulart. Por lá apareciam do poeta Vinicius de Moraes ao ex-deputado Carlos Marighella.
Se o abandono do prédio de imenso valor cultural tivesse gerado horror igual ao que fustiga os sem-teto, o problema talvez já tivesse sido resolvido, quem sabe com a construção de um centro cultural, sem deixar de honrar os direitos do Flamengo.
Os moradores de rua que lá estão ocuparam recentemente um terreno da Cedae. Depois, passaram a dormir na Cinelândia. Uma das mulheres sem-teto contou: ''Começou a chover e a fazer frio, não tinha como ficarmos na rua. Viemos para cá porque não temos nada. Dentro do prédio tudo também está caindo aos pedaços, não há portas, as janelas estão quebradas e tudo está precário. Porém, ainda assim, é melhor do que ficar na rua''.
É preciso odiar muito pobres e miseráveis para preferir um prédio abandonado a um teto, mesmo caindo aos pedaços, para quem não tem lugar melhor para sobreviver.