Dilma e a síndrome de Mourinho
Mário Magalhães
Quando alguma viúva da ditadura insistir na cantilena avessa à democracia, as manifestações populares do domingo e da sexta-feira serão sempre exemplos a evocar das virtudes do regime em que cada cidadão pode ir às ruas vender o seu peixe, sem ameaça de ser impedido de se expressar.
Os maiores atos ocorreram ontem, contra o governo federal, por todo o país. No epicentro, São Paulo, 210 mil pessoas protestaram, conforme a estimativa do Datafolha (a Polícia Militar chutou 1 milhão). Parcelas numerosas das multidões gritaram “Fora, Dilma” e clamaram pelo impeachment da presidente.
A data marcou os 30 anos do fim da ditadura, com a expulsão de cena do último general governante. A hipocrisia imperou, e até quem outrora se opôs à Campanha das Diretas celebrou o aniversário certo de que memórias corrompidas se esqueceriam dos fatos como os fatos ocorreram. Os mesmos que em outros 15 de março festejaram a posse de ditadores agora fingem que tal infâmia inexistiu.
A mobilização dominical mostrou vigor oposicionista, em contraste com o governo acuado, menos de três meses depois da largada do segundo mandato. Havia sido um revés para os partidários do impeachment a não inclusão do nome de Dilma Rousseff na lista de suspeitos a investigar, encaminhada ao STF pelo procurador-geral da República, no âmbito da operação Lava Jato.
Mas a disparatada ida da presidente à TV no domingo anterior aos protestos contra ela, estimulando panelaços Brasil afora, turbinou a adesão ao 15 de março. O pronunciamento de Dilma foi interpretado como um desafio por eleitores que a rejeitaram em 2014 e que se recusam a aceitar a soberania das urnas. O blog já havia analisado dessa forma antes deste domingo (“Dilma erra demais, parece zonza e fornece munição ao golpismo”).
O blog também prognosticou, com acerto, que os atos convocados pela CUT para a sexta-feira 13, somados, reuniriam menos gente que o Comício da Central do Brasil, em 1964; que o conjunto dos protestos contra Dilma teria público menor que as Marchas da Família de 51 anos atrás; e que no domingo haveria mais audiência que dois dias antes (“Comício da Central e Marcha da Família: por que 2015 é diferente de 1964”). Em relação à última previsão, fui fustigado por bajuladores do poder que se recusam a ver as coisas como as coisas são _ou estão.
Se as massas de ontem surpreenderam mesmo o governo, foi por miopia, para ver ao longe, e astigmatismo, para enxergar o que está ao alcance do nariz. Deficiência de visão política, quase cegueira.
Impeachment e Constituição
O impedimento do presidente é previsto na Constituição. O governante ter cometido crime, como no caso Collor, em 1992, é condição para o impeachment. Não se conhece indício ou prova de que Dilma tenha sido criminosa na roubalheira na Petrobras escrutinada pela Lava Jato. Não há base constitucional para sua retirada do governo. Logo, o impeachment equivaleria à derrubada ilegal da presidente consagrada pelos brasileiros em outubro, com uma diferença de 3.459.963 votos sobre seu antagonista. Noutras palavras, haveria golpe de Estado.
Na democracia, o voto decide. É legítimo discutir se o governo é bom ou ruim, se Dilma merece ou não reverência, se é gênio ou mente limítrofe. Outra coisa é o estupro da soberania do sufrágio popular.
Ontem desfilaram lado a lado quem defende que Dilma e o PT sejam varridos nas eleições de 2018 e quem alardeia o impeachment imediato ou variantes menos polidas do golpismo, como a “intervenção militar”.
Todos aceitaram protestar ao lado de quem prega o regresso dos militares; de quem enforcou bonecos de Lula e Dilma, em imagem que lembra a Ku Klux Klan; de quem levou a faixa “Basta de Paulo Freire” _ódios não envelhecem; com discurso ou não, ao lado de Jair Bolsonaro, Paulinho da Força, um torturador do antigo Dops, veteranos do Comando de Caça aos Comunistas e outros profetas da intolerância.
O parágrafo acima não “acusa” ninguém. É uma constatação objetiva.
Na vida, cada um escolhe a sua trincheira.
O Brasil é o estranho país em que ditos liberais gostam de uma ditadura, como se observou no Estado Novo, de 1937 a 1945, e nas sombras que caíram de 1964 a 1985.
No interior de São Paulo, uma sede do partido de Dilma foi incendiada. Quem conhece um pouco de história sabe que muitos pesadelos principiaram assim.
Virada à direita fracassou
Em vez de aplicar o programa propagandeado na campanha, Dilma adotou o eixo da agenda do adversário do segundo turno.
A presidente age como se tivesse perdido a eleição, e não triunfado.
Ela prometeu que preservaria conquistas dos mais pobres, e em seguida cortou direitos dos trabalhadores. Até agora, os ricos não pagam pela crise econômica. Medidas de taxação de fortunas introduzidas em países onde vigora o capitalismo pleno são ignoradas aqui.
O governo Dilma Reloaded tem feito opção preferencial pelos abastados.
A candidata Dilma prometeu um pacote anticorrupção. Cinco meses mais tarde, a promessa só é renovada, como ontem à noite, quando o Planalto se vê acossado.
O governo deve pensar que os brasileiros são mentecaptos, incapazes de notar que o prometido não é cumprido.
A leniência com a corrupção ajuda os endinheirados, como os donos de empreiteiras, e fere o patrimônio público, como a Petrobras.
Dilma deu uma virada à direita buscando seduzir brasileiros que sufragaram Aécio Neves. Estes não lhe deram pelota, como testemunhamos no domingo. E a base social da presidente, atônita, assiste à petista impor o arrocho que castiga sobretudo quem mais necessita da proteção do Estado.
Sem honrar seu programa de campanha, Dilma dificilmente recuperará o respaldo dos que nela votaram. A demonstração de fraqueza encoraja os oposicionistas, entre eles os golpistas mais vulgares.
Se o arrocho levar brasileiros novamente à pobreza extrema, desgraça superada por dezenas de milhões nas últimas décadas, os próximos atos terão o reforço do povão. O desemprego é outra ameaça.
Parece haver uma bolha palaciana que impede a administração Dilma de entender os recados das ruas. Já havia sido politicamente estúpida a aparição da presidente na TV oito dias atrás. Foi suicida a entrevista que os ministros José Eduardo Cardoso e Miguel Rossetto concederam ontem no começo da noite. Eles não se deram conta de que levantariam a bola para um novo e ainda mais ruidoso panelaço. Poderiam se pronunciar por meio de nota e deixar para hoje a palavra do governo _pela boca de Dilma, que deve satisfações aos brasileiros, tanto os que nela votaram quanto os que a desprezaram.
A inépcia de Dilma e seus auxiliares mais próximos é tal que eles ignoram o fogo com que estão lidando. Depois de ontem, o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, ganhou ainda mais poder para pressionar _ou chantagear, como quiserem_ o Executivo.
Será que o governo não havia se preparado, teve semanas para isso, para a eventualidade de sucesso dos protestos anti-Dilma? Os dois ministros se comportaram como dirigentes de grêmios estudantis, amadores. Sem rasgo de serenidade. Só seria pior se o inacreditável ministro Mangabeira Unger lhes tivesse feito companhia.
Em 1964, havia um general, Assis Brasil, que assegurava ao presidente João Goulart um “dispositivo militar” para impedir golpes. Era ficção, regada a uísque. Ao ver Cardoso e Rossetto, lembrei-me do fanfarrão do passado. Dilma deveria estudar história.
Futebol ensina
Na semana passada, o supertime do Chelsea passaria às quartas-de-final da Champions League se, com a vantagem de jogar em casa, empatasse em 0 a 0 com o PSG.
O técnico do clube inglês, José Mourinho, armou a equipe com cuidados defensivos em excesso, apostando na igualdade sem gols para se classificar. Ainda no primeiro tempo, o visitante francês teve um jogador expulso.
Mesmo com onze contra dez, Mourinho seguiu com medo de levar gol e pouco apetite para marcar um. Tanto se preocupou em defender que o Chelsea acabou sofrendo dois gols e sendo eliminado.
O Chelsea de Mourinho é o retrato do segundo governo Dilma. Tão fincado atrás, em vez de avançar, acabou fora da Champions.
A presidente que abra os olhos.