Blog do Mario Magalhaes

Paulo Betti e tanta história pra contar

Mário Magalhães

Paulo Betti: confesso que vivi - Foto Marlene Bergamo/Folhapress

Paulo Betti: confesso que vivi – Foto Marlene Bergamo/Folhapress

 

Outro dia eu falei no Konstantin Stanislavski, ator e diretor que revolucionou o teatro na virada do século 19 para o 20. O gênio russo ensinava ao ator, entre muitas coisas, buscar na memória e na vivência a argamassa para construir seus personagens.

Voltei a pensar ontem no Stanislavski, ao ler o fabuloso depoimento do formidável ator Paulo Betti à formidável repórter Mônica Bergamo: se interpretar é cozinhar a partir do que se viveu, matéria-prima e temperos não faltam na carreira do ator que brilha como Téo ''Curuzes'' Pereira na novela ''Império''.

Ao ler as histórias do Paulo Betti, também recordei o título de um belo livro de poesia, lançado em produção independente no inverno de 1981: ''Vidas em vidas'', de André Petry e Cláudio R. P. Schuster.

Pois o que o ator contará em monólogo no teatro são ''vidas em vida'', ou a vida de muitas pessoas fascinantes que passaram pela dele.

O realismo fantástico na vida de Paulo Betti, a melhor leitura do fim de semana.

Se eu fosse editor, correria para encomendar um livro de memórias.

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Paulo Betti leva aos palcos o ambiente 'inóspito e poético' de sua infância

Por Mônica Bergamo

Paulo Betti está catando latinhas no mato para que elas não entupam os bueiros. Paulo Betti está gravando as últimas cenas da novela ''Império'', em que interpreta o homossexual Téo Pereira. Paulo Betti está tentando descobrir por que chora ao se lembrar do São Bento, time de futebol de Sorocaba (SP), cidade em que foi criado, e não ao se recordar de quando, aos 16 anos, internava o pai no manicômio. Paulo Betti mergulha nesse contrassenso enquanto lê para a sua terapeuta o monólogo (que chama de ''monóloco'') que levará ao teatro a partir do dia 19.

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O ator conversou com a coluna há alguns dias, num restaurante italiano no Rio de Janeiro, sobre esse novo trabalho. Sozinho no palco, ele falará de sua infância num quilombo, quando lia novena para a mãe, Adelaide, que era analfabeta, e segurava porcos pelas pernas para que a avó, Celestina, os matasse, enfiando a faca em seus corações. Durante a conversa, as frases de Betti jorravam, numa sequência frenética.

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A MORTE

A minha família sempre foi muito macabra, de uma certa maneira. Eu convivi com os meus pais mais velhos [ele é o temporão de sete filhos] e a presença da morte sempre foi forte. As pessoas eram veladas na sala da gente. A mesma mesa em que eu jogava botão era a mesa em que botavam o caixão. Quando uma pessoa morria de tuberculose, o colchão era queimado na frente da casa dela.

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Sempre pensei muito nisso. E pedi para um amigo escrever um monólogo sobre a morte. Gostei. Mas tinha um momento em que o personagem falava: ''A minha mãe tinha uma empregada doméstica…''. Eu achei estranho porque a minha mãe era empregada doméstica. Então decidi escrever o meu monólogo. Vou contar todas as mortes, dos meus avós, do meu pai e da minha mãe. Eu estou meio obcecado por isso.

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Percebi que estava escrevendo o monólogo havia muito tempo [abre um caderno com textos que escreveu à mão entre 1984 e 1992 e mostra recortes de jornais, o diploma de datilografia, a carteira de trabalho, uma carta para Lula, a quem apoiou em todas as eleições]. Para fazer o monólogo, eu reli tudo isso.

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Eu tô gostando muito de fazer a seguinte atividade política: pegar um saco de plástico e andar no mato. Eu vou pegando lixo, sabe? Latinhas velhas e coisas que vão entupir os bueiros. Neste momento, modestamente, eu quero ajudar dessa forma. Eu quero contribuir para desobstruir esses bueiros e não encher muito o saco neste momento em que eu não estou entendendo nada direito, né?

AS MULHERES

Minha mãe é a figura central [do monólogo]. Eu mamei até os sete anos. Quando ela tinha 80 anos, eu a acompanhei num exame. Ela estava com os peitos bonitos. Achei incrível. Sinal de que não fiz mal nenhum para ela, né?

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Quando a minha mãe teve um AVC, o médico, doutor Spartacus, falou para a minha irmã Cida: ''Olha, ela não dura muito, deixa ela aqui no hospital''. A minha irmã era enfermeira e decidiu: ''Ah, vou levar ela pra minha casa porque aqui ela vai morrer logo''. E botou a nossa mãe em um quartinho no fundo do quintal. Quando eu ia para Sorocaba, dormia nele. Durante três anos, eu saía do Rio, ia para lá e deitava ao lado da minha mãe em coma.

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Depois de um ano do AVC da nossa mãe, eu recebo um telefonema da minha irmã Cida: ''Paulo! Quá quá quá! O doutor Spartacus morreu!'' Ele morreu antes do que ela.

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Eu levava vida de garoto de roça, pé no chão. Sorocaba era mistura de roça e de cidade. Nós tínhamos uma criação de porcos no quintal. A minha avó me obrigava a segurar a pata do porco enquanto ela ia com a faca no coração, rachava o coração do porco, e depois a gente abria o corpo dele.

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Não tinha televisão, rádio, ferro de passar. No bairro todo, apenas uma casa tinha TV. Só aos 16 anos eu andei de elevador, na Federação de Teatro Amador da Baixa Sorocabana. E peguei num telefone pela primeira vez.

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O nosso bairro era um quilombo, 95% dos moradores eram negros. Tinha outra família branca lá, além da nossa, e mais ninguém.

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Acho que alguém da família para a qual a minha mãe trabalhava orientou e ela me botou no pré-primário. Eu sou prova acabada de que ficar o dia inteiro na escola, comer sagu de sobremesa, funciona. Minha mãe, meu pai, minha avó não tinham dentes. E onde eu aprendi a cuidar deles? Me lembro até hoje da professora que me ensinou a escovar os dentes.

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A minha mãe fez casinhas de taipa no quintal e alugava. Certa vez uma inquilina não queria sair. Meu irmão tirou o telhado da casa. Quando a mulher deitou e olhou para cima, tinha virado sem-teto!

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Teve uma fase em que a minha mãe lavava roupa para fora. Ela ia na faculdade de medicina da PUC em Sorocaba, pegava as roupas dos estudantes. Eu tinha uns 12 anos. E tinha que ajudá-la. Eu não sabia engomar. Mas passar eu sabia. E ainda sei.

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Aos 19 anos, eu voltava para casa e, como ela não sabia ler, eu rezava, lia a novena com ela. A minha mãe era benzedeira. E convivia o tempo todo com os espíritos. Se uma porta abria com o vento, ela falava ''entre''. A minha bisavó ''vinha'' e penteava o cabelo dela. O lobisomem era sempre um tio da gente, próximo. Sabe as ''Fábulas Italianas'', do Italo Calvino? Eram as histórias que a minha avó contava.

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A minha avó foi envelhecendo até engatinhar no chão, com 87 anos. Foi virando uma Úrsula dos ''Cem Anos de Solidão'' [de Gabriel García Márquez]. Foi sumindo praticamente. Teve uma fase em que mijava em pé na frente da minha casa. Não tava nem aí. Parecia essas índias peruanas que você vê na estrada. Caiu da cama, quebrou o fêmur e morreu.

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Ela era sogra, brigava com o meu pai. Tinha sempre uns cochichos: ''Ele hoje não tá bem''. Ele ouvia, brigava, ela tentava morder ele. Não tinha mais dente mas tentava morder assim mesmo.

OS HOMENS

Meu avô era meeiro de um fazendeiro negro. Eu fui entrevistar as filhas dele, e elas se desculpavam: ''Paulo, a gente tratava bem o seu avô''. Porque o meu avô era praticamente um escravo deles.

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Eu só fui ter noção do drama do meu pai, que tinha esquizofrenia, aos 16 anos, quando comecei a interná-lo. Ele ia numa camisa de força. Ficava na cadeia até que conseguíssemos vaga no hospital psiquiátrico, que ficava ao lado. Minha mãe levava ele na gira de umbanda. Me lembro de meu pai rodando e eu com medo de cair também.

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Quando não estava internado, ele trabalhava como servente de pedreiro, sorveteiro. Eu tinha vergonha, né? Todo garoto sente isso quando o pai vai buscá-lo na escola. Mas não era o carro do pai que não era bacana. Era o carrinho de sorvete.

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Ao mesmo tempo em que eu queria passar direto por ele, fingir que não era o meu pai, eu parava, mas não de peito aberto. Essa cisão emocional é uma barra pesada. Então eu sempre tive problemas estomacais violentos. É foda, né?

Para ler a reportagem na íntegra, basta clicar aqui.